Crítica

Memória ou imaginação? Fantasia ou realidade? Ficção ou documentário? Animação ou live action? Estas são apenas algumas das tantas dúvidas que se impõem ao espectador de Valsa com Bashir, um longa de difícil acesso, mas não por isso menos interessante ou original. Produção israelense dirigida por Ari Folman, foi exibida pela primeira vez dentro da mostra competitiva do Festival de Cannes de 2008, e desde então vem acumulando elogios e reconhecimentos por onde passa: Melhor Filme do ano, segundo a Sociedade Nacional dos Críticos de Cinema dos Estados Unidos, premiado com o César (o Oscar francês) e o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, além de ter sido indicado ao Oscar na mesma categoria. No total foram 23 premiações e outras 22 indicações ao redor do mundo. São créditos mais do que suficientes para despertar a atenção de qualquer curioso.

Valsa com Bashir é, na verdade, um documentário com passagens ficcionais produzido na forma de animação. A verossimilhança não vem da alteração da realidade – como foi feito em Waking Life (2001) ou O Homem Duplo (2006) – nem do através do incremento digital – como em O Expresso Polar (2004) ou Beowulf (1999). A ligação com o real se dá pelo tema e pelos próprios depoimentos que recheiam a ação. Esta tem início quando o próprio realizador aparece em um bar, conversando com um amigo, que relata um sonho que o tem perseguido nas últimas noites, diretamente relacionado com uma situação vivida pelos dois durante o período em que estiveram em serviço na Guerra do Líbano, no início dos anos 80. O problema é que Folman não se lembra de nada meramente similar ao que lhe é narrado e, ao refletir sobre o episódio, chega a conclusão de que sua mente deve ter bloqueado todas as memórias referentes a esta passagem de sua vida. Inconformado, parte em busca dos antigos colegas para tentar recordar – e, assim, resgatar – este momento tão significativo de sua história. Ao mesmo tempo, busca entender o que aconteceu consigo próprio para ter provocado este trauma.

Uma das apostas certas do Oscar 2009, Valsa com Bashir provocou duas surpresas: primeiro quando saíram as indicações e o filme foi colocado na categoria de Filme Estrangeiro, e não nas de  Longa de Animação (a mais provável) ou Documentário em Longa-Metragem (a mais ousada); e depois quando a premiação aconteceu e, mesmo na condição de favorito, acabou saindo da festa de mãos abanando. Este resultado, no entanto, em nada afeta a percepção do público diante deste trabalho que esta, no mínimo, longe do convencional. As imagens, mesmo ‘disfarçadas’ sob o colorido e o traço leve de um desenho animado, não aliviam uma mensagem que busca ser ouvida – de que toda guerra, verdadeira ou ilusória, tem um mesmo propósito: acabar com a vida. E um objetivo assim nunca será satisfatório ou recompensador.

No final das contas, a discussão entre gêneros, propósitos e sentimentos por trás de Valsa com Bashir fica num segundo plano diante da força que o projeto assume em sua conclusão. Talvez a escolha pela animação tenha sido a mais acertada, pois o espectador é iludido por uma falsa sensação de segurança ao adentrar neste mundo de dor, sofrimentos e cruéis verdades, mas certamente se sentirá recompensado após a travessia. Este não é um filme fácil e que arregimentará fãs ardorosos. É, no entanto, uma obra que provoca um respeito silencioso, que cala fundo em nosso peito e emociona sem a necessidade de recorrer a qualquer recurso melodramático, bastando-se na exposição da realidade. Mesmo que às vezes esta seja tão absurda e inacreditável que seja preciso disfarçá-la no esforço de compreendê-la.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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