Crítica

Una tem um segredo. Ou melhor, ela pensa ter um segredo. Pois ao sair de casa, logo pela manhã, deixando a mãe sozinha, essa teme justamente por saber o que a filha pretende. E tem sido assim todos os dias, há mais de uma década. Uma pressão tão grande que o pai não resistiu, vindo a falecer durante este caminho. Agora são só as duas. Mas teria sido sempre assim? Ou ainda mais grave: quer a mais jovem que assim continue? Os planos da garota, os traumas que ela carrega e as consequências de seus atos, ontem e hoje, constroem a teia do enredo de Una, longa de estreia de Benedict Andrews.

A origem teatral do texto – baseado na peça Blackbird, de David Harrower, também autor do roteiro – fica evidente durante o desenrolar da história. Una é uma personagem que cai como uma luva dentro do perfil perturbado e introspectivo que Rooney Mara tem se agarrado durante sua filmografia – ela já foi, inclusive, indicada duas vezes ao Oscar por personagens dentro deste mesmo perfil, em Millennium: Os Homens que não Amavam as Mulheres (2011) e Carol (2015). É uma jovem inquieta, que passa as noites em claro em baladas pesadas, transando com desconhecidos e voltando para casa apenas para tomar um banho e seguir adiante. O sono não lhe pertence, portanto. Mas esse momento de descanso estaria reservado apenas aos justos, como diz o ditado, ou também àqueles que nada mais tem a perder? Una sabe o que quer, e é atrás disso que ela vai.

E não é bem o que, e, sim, quem. Una quer Ray (Ben Mendelsohn, eficiente em esconder as dubiedades de um homem que pecou, mas que não se sabe ao certo o quanto aprendeu com estes erros), e para isso vai até o trabalho dele, em uma outra cidade. Lá ele se chama Peter, é chefe e é também chefiado, com obrigações acima e abaixo. Mas não só isso: é um novo homem, casado, em uma casa que nada se assemelha aquela que havia construído com base em mentiras e ilusões. Pois antes, quando Ray e Una eram vizinhos, ele podia ser mais novo, mas ela era apenas uma garota de 14 anos. A paixonite adolescente que surge nela é, surpreendentemente, correspondida por ele. Mas a quem cabe tomar as decisões certas?

Mais de uma década se passou, e Una segue atrás de Ray. Ele acredita ter pago pelo que fez, não quer mais vê-la, apenas esquecer. “Você aguentou pelos quatro anos em que esteve preso, mas e eu, que sigo com isso dentro de mim a vida toda?”, diz ela. No entanto, Una não é vítima. Ela não está atrás de vingança. Mas bastaria afirmar que, se não quer que ele pague, por outro lado o quer de volta? Estaria ela tão inebriada por aquele homem que mesmo já adulta não consegue esquecê-lo? Teria Andrews e Harrower coragem suficiente de afirmar que um caso de pedofilia não é simplesmente uma relação de abuso, e que é possível que nesse relacionamento se escondam outros sentimentos? O tema é polêmico e abre espaço a inúmeros questionamentos. Infelizmente, os realizadores não parecem estar à altura destas indagações.

Todos mentem. Una mente para a mãe, para Ray, até para o jovem Scott (Riz Ahmed), funcionário de Peter que acabará envolvido nas artimanhas dela. Ray também mente: para Una, para o patrão, para os empregados e mesmo para sua nova mulher. O que eles guardam sob tanta mentira? Muitas portas são abertas, só que não se vislumbra esforço em fechá-las. Una já é adulta, sabe o que faz, e não pode voltar no tempo. Ray está o tempo todo indeciso entre ir e vir, entre assumir e fugir, entre ser o que quer ou o que acredita que deve ser. Tudo que eles precisam é de um fechamento. E este poderá vir na forma mais inesperada – ou também no modo mais simples. Lamenta-se, no entanto, que o mesmo não se dê com o espectador, que terá uma experiência frustrante diante de um filme que promete muito, porém exime-se das responsabilidades levantadas, apenas para seguir tão irresponsável quanto seus personagens.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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