Crítica

O rio Yangtze percorre mais de 6000 quilômetros desde a sua nascente no Tibete, sendo o maior em extensão da Ásia. Ele é cenário deste documentário que requer a nossa paciência, em virtude da maneira paulatina de nos colocar em contato com o espaço margeado por inúmeras histórias, com isso, de certa maneira, oferecendo um panorama bastante rico da China de hoje. A belíssima fotografia em preto e branco torna visualmente farta essa viagem marcada por uma lentidão contemplativa que pode afastar o espectador mais carente de ações frequentes. O cineasta Xu Xin não se furta de demorar-se em determinadas situações, justamente porque seu itinerário, guiado por observações cuidadosas, tenciona a retirar da paisagem o que a pressa encobre. Aliás, os personagens de Uma Paisagem de Yangtze, se podemos chama-los assim, são pessoas “invisíveis” que vivem literalmente nas margens, simbolizando a miserabilidade dos locais.

Repleto de instantes propensos à dispersão, pois nem sempre capaz de ancorar demoradamente nosso olhar, Uma Paisagem de Yangtze é um filme difícil de acompanhar sem fadiga. Todavia, entrecortando os instantes aparentemente vazios, está uma série de outras evidências pujantes, especialmente quando a câmera demonstra interesse pelos moradores ao longo do Yangtze. Na medida em que sobe o rio rumo à nascente, ou seja, tomando um caminho às origens, a narrativa é enlevada pelo registro desses homens vivendo abaixo da linha da pobreza, em condições tão precárias quanto deflagradoras de uma situação social chinesa pouco abordada. Vemos um senhor instalado embaixo de uma ponte, cozinhando restos e exibindo melancolicamente montantes consideráveis de dinheiro, provavelmente alguma moeda extinta ou desvalorizada ao ponto de não ajuda-lo a sobreviver. Agora, é só papel.

Xu Xin demonstra apiedar-se dessas figuras marginais, que expõem uma China de contrastes berrantes. O rio é, ao mesmo tempo, potência da natureza e econômica, isto exposto pela intensa atividade das mais diversas empresas que ou se valem do rio para transportar produtos ou extraem diretamente dele as matérias-primas. O Yangtze é um gigante afortunado cercado de desvalidos por todos os lados, de gente que passa as horas em meio a escombros, ratos e outras pragas. Uma Paisagem de Yangtze, apesar de seu ritmo demasiadamente arrastado, proporciona ganhos aos tenazes dispostos a encarar o desafio, especialmente por apresentar algo duramente poético. O caráter informativo também está presente, por meio de dados surgidos frequentemente na tela que proporcionam uma melhor contextualização dos vários pontos de vista, dando conta das tragédias das paragens.

Uma Paisagem de Yangtze cresce sobremaneira após a sessão, o que mostra a sua capacidade de reverberar para além do enfado provocado por sua estrutura narrativa. É triste ver pessoas sofrendo ao largo do progresso e do gigantismo de uma das mais importantes nações do mundo. O conflito com o Tibete, território cuja administração a China reivindicou para si através de uma violenta intervenção militar nos anos 50, não passa em brancas nuvens, sendo alvo periódico do olhar desolado de Xu Xin, artista que demonstra frequentemente seu pesar. O grande mérito do filme é conjugar as dimensões humana e social, sem recorrer a procedimentos banais, fazendo da candência peculiar uma arma contra a superficialidade de miradas menos detidas. É uma opção muito arriscada, que tende a restringir a fruição de suas não poucas qualidades, emblema de uma visão muito particular e complexa da China atual.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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