Crítica

"Eu preferiria fazer um filme sobre um cara passeando com o cachorro do que um sobre o imperador da China", declarou Jim Jarmusch a um entrevistador em 2001. Essa pequena frase, dita em tom de brincadeira, pode servir como uma síntese quase perfeita do cinema minimalista do diretor. Seu interesse é o mundano, sem muito compromisso com estruturas narrativas convencionais. É apenas uma câmera paciente que observa as particularidades de cada personagem surgindo em meio aos diálogos. Embora Uma Noite Sobre a Terra não seja uma de suas obras mais famosas, funciona como ótima amostra de marcas autorais, agradando a quem já está familiarizado com o estilo e servindo, também, como introdução ao cinema de Jarmusch.

Estruturado em segmentos independentes, o roteiro aborda cinco viagens de táxi em diferentes cidades ao redor do mundo, numa mesma noite, começando em Los Angeles ao anoitecer e terminando em Helsinki, capital da Finlândia, quando os primeiros raios de sol começam a surgir no céu. No primeiro segmento, uma rica executiva (Gena Rowlands) tenta escalar a jovem taxista Corky (Winona Ryder) para uma produção de Hollywood. Em Nova York, Yo-Yo (Giancarlo Esposito) pega o táxi de um imigrante alemão (Armin Mueller-Stahl) que, além de não dominar a língua inglesa, é completamente incapaz de dirigir. Em Paris, a passageira é uma jovem cega (Béatrice Dalle) que rebate todas as perguntas do motorista  (Isaach De Bankolé) com acidez. Em Roma, um taxista (Roberto Benigni) insiste em relatar suas aventuras sexuais para o padre que viaja no banco de trás (Paolo Bonacelli). Em Helsinki, passageiros (Kari Väänänen, Tomi Salmela e Sakari Kuosmanen) e motorista (Matti Pellonpää) compartilham histórias de vida absurdamente trágicas.

Essencialmente desprovido de enredo, este filme é formado quase inteiramente por diálogos. A falta de ação, entretanto, nunca torna a obra cansativa ou maçante, graças à fluidez do roteiro (que Jarmusch diz ter escrito em apenas uma semana) e à liberdade que os atores ganharam para improvisar. As duas horas de projeção têm altos e baixos; há segmentos incríveis e outros medianos, mas o resultado é um conjunto de histórias conciso e cativante.

Não há uma única má performance aqui. Se o monólogo sujo e exagerado do motorista italiano funciona, é graças à improvisação apressada e hilária de Benigni. Esposito (hoje conhecido principalmente por ter vivido o vilão Gus Fring, de Breaking Bad) surge como um dos personagens mais engraçados do longa, encarnando um nova-iorquino escandaloso que forma uma doce relação de amizade com o personagem de Mueller-Stahl. Já a taxista tomboy de Ryder se torna uma das figuras mais marcantes do filme enquanto navega por Los Angeles com uma segurança juvenil, surpreendendo a passageira com sua aparente falta de ambição e o hábito de fumar dezenas de cigarros em questão de minutos.

Explorando as pequenas relações entre passageiros e motoristas, nos microcosmos dos táxis, o conjunto de viagens se transforma numa espécie de crônica da condição humana: eis uma porção de estranhos de origens completamente diferentes criando laços que duram apenas o tempo do trajeto, enquanto suas respectivas grandes cidades dormem. Há conversas profundas e banais sobre relacionamentos, sexo, ambição, relações familiares, preconceito, diferenças culturais e assim por diante. Original e divertido, Uma Noite Sobre a Terra pode trazer pouco de extraordinário (no sentido literal da palavra)  e talvez não seja interessante para todos os tipos de público. Oferece, entretanto, uma experiência riquíssima a quem se dispuser a observar o maior fenômeno da Terra: pessoas sendo, simplesmente, pessoas.

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cursa Jornalismo na Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo e é editora do blog Cine Brasil.
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