Crítica

A morte atravessa o caminho de Gun-su (Lee Sun-kyun) duas vezes num curto espaço de tempo. Voltando para acertar os preparativos do sepultamento da mãe, ele atropela um homem que tomba já sem vida. Desesperado, o protagonista de Um Dia Difícil coloca o morto no porta-malas, única atitude que parece minimamente sensata diante desse cenário caótico. O drama se intensifica, pois os compromissos da iminente cerimônia fúnebre são urgentes, o que não lhe dá muito tempo para pensar nos próximos passos. Gun-su é policial, um homem da lei que, ainda por cima, está sendo investigado pela corregedoria, assim como seus colegas. Evidências de corrupção não faltam, a delegacia está mesmo metida num lamaçal. Pressionado, ele resolve apelar, colocando a prova do assassinato junto da própria mãe, antes que o caixão dela seja lacrado e enterrado a sete palmos do chão.

Um Dia Difícil começa como um daqueles filmes em que alguém é sucessivamente golpeado pelo destino ou algo que o valha. De onde menos se espera brota um bem-vindo humor negro, característica de algumas produções do cinema sul-coreano. Rimos da desgraça de Gun-su, até mesmo porque o diretor Seong-hoon Kim faz questão de apresentá-lo como um cara arrogante e profissionalmente corrompido, ou seja, que merece pagar. Sina e punição, assim, andam de mãos dadas nos guiando por estradas mais ou menos conhecidas. A sequência impagável de Gun-su contrabandeando para dentro da funerária o cadáver que ele precisa ocultar, valendo-se para isso, inclusive, do soldado de brinquedo da filha, traz à tona qualidades até então tímidas, sobretudo no que diz respeito à montagem e ao desenho sonoro, atributos que, entre outros, empurram o filme para longe do ordinário.

Uma reviravolta altera o rumo principal da história. Chantageado por um desconhecido ciente de seu crime, Gun-su passa de encurralado pela consciência à literalmente ameaçado por alguém mais forte, pois incógnito, protegido pelas sombras. A objetividade sustenta a urgência cada vez mais latente da narrativa. Em nenhum momento o diretor Seong-hoon Kim abandona o humor ácido, elemento não escrachado, nada propenso ao riso frouxo e descompromissado. Pelo contrário, essa graça que surge na fronteira entre o bizarro e o puramente cômico é ingrediente fundamental às sequências nonsense e, portanto, responsável pela singularidade do filme. Boa parte do que vemos, embora improvável, é perfeitamente possível no nosso cotidiano de personagens igualmente predispostos ao erro, não apenas nesse universo diegético sem qualquer sinal de heroísmo.

A agilidade e a perspicácia do registro se encarregam de não deixar a peteca cair, mantendo contínuo o interesse na tragicomédia do protagonista de Um Dia Difícil, homem que come o pão que o diabo amassou nas mãos de alguém que poderia ser ele próprio, pois fruto do mesmo sistema social fraturado. A saída encontrada para potencializar o desamparo, inclusive moral, sem cair num drama pesado demais (embora pouca coisa seja, de fato, leve), é fazê-lo parceiro íntimo do insólito, às vezes até do ridículo - no bom sentido. Há uma sutil articulação entre o verossímil e o inverossímil, com predominância do último, contudo sem perda substancial do primeiro. Essa tensão é essencial para delinear a trama, vivida por gente achincalhada, ora pelos caprichos do acaso, ora pela brutalidade do humano mais próximo.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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