Crítica

Prestes a ser reintegrada ao trabalho após uma crise de depressão, Sandra (Marion Cotillard) recebe a notícia de que foi demitida, pois a maioria de seus colegas optou por receber um bônus de mil euros ao invés de tê-la de volta. Partimos, então, em Dois Dias, Uma Noite, o novo filme dos irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, de uma proposição patronal perversa, uma vez que ela obriga cada um a escolher entre o alivio momentâneo da própria situação financeira e o bem-estar de alguém próximo. Ajudada por uma amiga, Sandra convence o chefe, no fim do expediente de sexta-feira, a refazer a votação na segunda pela manhã, ou seja, ela tem o tempo que dá nome ao filme para convencer os votantes a mudarem de opinião. Se a situação em si não é fácil, complica-se pelo histórico depressivo da protagonista, estado que ameaça puxá-la ainda mais para baixo nesse momento de quase desespero.

E se há mesmo desespero na situação de Sandra é porque a realidade francesa, como um todo, está bem longe dos cartões postais, da imagem que nos vendem, por exemplo, as agências de turismo. Aliás, os Dardenne sempre fizeram questão de perscrutar lados menos óbvios da Europa, de mostrar desvalidos, pessoas em vulnerabilidade mais ou menos acentuada. Aqui, em cada casa que Sandra bate para advogar em favor da manutenção de seu trabalho há uma realidade difícil, de gente que nem sempre tem como por em dúvida receber ou não um extra, mesmo que isso acarrete a desgraça alheia. É isso que torna a jornada de Sandra tão dolorosa, tão difícil. Como pedir que deixem de pagar suas contas, que tratem de melhorar um pouco de vida, afinal, como esperar realmente que ponderem favorecer o outro à custa de prejudicar a si e aos seus?

Sandra parece cada vez mais fraca na tarefa, não apenas de convencer os outros da sua necessidade, como também de suprir a expectativa do marido que lhe apoia incondicionalmente. Ao contrário dele, otimista de que no fim das contas tudo dará certo, ela vai minguando diante de cada não, frente à iminência de perder o emprego e ver complicada a situação de sua família. Marion Cotillard, atriz que ganhou notoriedade mundial após vencer o Oscar por Piaf: Um Hino ao Amor (2007), compõe sua personagem com precisão, evidenciando nas minúcias o peso da complexa situação que se apresenta a ela, bem como expressando corpórea e psicologicamente a batalha contra a depressão.

Dois Dias, Uma Noite é quase todo calcado no rosto e no corpo de Sandra. É através dessa personagem cada vez mais acabrunhada por, nas palavras dela, “mendigar” a manutenção do emprego e, por conseguinte, negociar a própria dignidade – esta necessidade emocional aparentemente negada aos desempregados, então párias dentro da lógica cruel que rege a maioria das sociedades – que temos deflagrada a engrenagem motriz do filme. Mesmo sem a aridez violenta presente em Rosetta (1999) ou em A Criança (2005), talvez, assim, mais alinhado dentro da filmografia dos Dardenne com O Garoto da Bicicleta (2011), outro filme no qual os belgas parecem dar mais espaço à esperança, Dois Dias, Uma Noite é uma realização dolorosa, justo por que nela acompanhamos a luta muitas vezes inglória de alguém que busca apenas subsistir, tanto no espectro pessoal quanto no social.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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