Crítica

Assim como os clichês só são reconhecidos como tais porque uma vez ou outra funcionam à perfeição – o segredo é não usá-los com exagero – da mesma forma ninguém se torna astro por acaso. Como Ricardo Darín, o maior nome do atual cinema argentino – e, por que não, de toda a produção cinematográfica ibero-americana. Afinal, ele até pode se aventurar em um ou outro projeto fora de sua terra natal, mas ao menos até hoje tem recusado categoricamente ofertas para atuar em outra língua – e isso significa não se arriscar em Hollywood e nem mesmo em parcerias no Brasil. Darín segue sendo legítimo, fiel ao que sabe fazer melhor – interpretar o homem comum em situações incomuns – e com um carisma tão gigantesco que consegue salvar até veículos feitos quase que exclusivamente para o seu estrelato. De qualquer forma, é muito bom perceber que este não é o caso de Truman.

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Afinal, basta uma leitura rápida da sinopse para que as expectativas a respeito deste segundo trabalho do ator com o diretor Cesc Gay – após o episódico O Que Os Homens Falam (2012) – sejam as mais baixas possíveis. Pra começar, Truman é o nome do cachorro do protagonista, e filmes sobre homens e seus cães de estimação ou são comédias bobas ou lacrimosos até o extremo – Tom Hanks, Owen Wilson e Richard Gere são apenas alguns que podem servir de exemplo. Indo um pouco mais adiante, descobrimos que o protagonista sofre de um câncer incurável e está decidido a morrer sem ir até às últimas com a quimioterapia, com isso encurtando sua sobrevivência, mas ganhando qualidade neste pouco tempo que resta. Com isso em mente, seu dilema se resume a decidir com quem deixar seu companheiro. Até que o melhor amigo surge de forma inesperada.

Apesar dos elementos comuns ao melodrama, Truman se salva da obviedade graças a alguns pontos importantes. Primeiro, temos o talento superlativo de Darín, que entrega uma performance afetuosa e dolorida, porém impelida de tamanha altivez e maturidade que torna impossível não se comover com seu destino. Depois, temos em cena também o ótimo Javier Cámara, um dos atores favoritos de Pedro Almodóvar (já esteve em três de seus filmes) – e isso, é preciso reconhecer, quer dizer muito. Por fim, há a sensibilidade do diretor em conduzir uma história que se expressa melhor pelos detalhes, por cada situação que desenha durante seu desenvolvimento e pelos sentimentos que ligam o personagens do que pelo todo em si. Cada parte encontrará um valor maior na memória afetiva do espectador do que o conjunto poderia resumir, e nem toda obra pode se orgulhar de um resultado como esse. Um diferencial, portanto, de peso inegável.

Javier é Tomás, aquele que deixou Madri para investir na profissão e acabou casando e constituindo família no gélido Canadá. Ele retorna para apenas uma semana com o objetivo de estar ao lado daquele que chegou a ser muito importante para ele em certo momento de sua vida, mas que hoje está há anos sem ver. O reencontro é desengonçado, há alguns tropeços no início, mas logo estão entendidos: não adianta querer demovê-lo de sua decisão, Julián (Darín) cansou de qualquer tipo de tratamento e prefere morrer em paz a insistir em busca de uma cura impossível. Ao amigo, tudo que resta é aceitar e lhe oferecer companhia. Nem que seja por poucos dias.

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A situação do cachorro, que à princípio parecia ser a força motora da história, logo é meio que deixada de lado – há visitas a possíveis novos donos, mas nada crível o suficiente para representar uma ameaça ao desfecho da trama, conclusão essa que sabemos desde o princípio, mas diante da qual será impossível conter as lágrimas. Neste caminho, nos deparamos com aqueles que não sabem como lidar com a situação, com o perdão inesperado, com o descaso profissional, com a relevância de uma situação maior do que desavenças do passado, com o último abraço da família. Cada nova situação proposta pelo roteiro é mais importante pelo significado que carrega do que pela sequência de ações que encerra. E assim tem-se dois excelentes atores no auge de sua forma, dispostos a fazer do pouco que dispõem muito em nome da arte que defendem, com calor e simplicidade. Truman poderia ser somente sobre um cachorro e seu dono prestes a morrer, mas é muito mais. Felizmente.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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