Crítica

Protagonista de Transeunte, Expedito é um aposentado de 65 anos que vaga pelas ruas do Rio de Janeiro acompanhando solitário o pulsar da cidade maravilhosa, quase como esperando a morte o levar. Seu cotidiano é marcado por afazeres banais e nada parece o impulsionar para longe da existência burocrática e protocolar. A falta da falecida mãe é apenas um dos elementos a diagnosticar esse homem onipresente na tela, mas seria ingênuo reduzi-lo ao estereótipo do indivíduo deveras apegado à figura materna. Há mais angústias o ferindo.

Da trama de Transeunte pouco se pode falar, pois feita apenas das andanças de Expedito, partindo da apatia até o descortinamento das inúmeras possibilidades para além da dor e autocomiseração. Pouco a pouco o tipo interpretado com maestria por Fernando Bezerra busca forças para fazer sua vida respirar fora dos itinerários auto-impostos, da viciante rotina ameaçadora de tragá-lo para o limbo da depressão. Aqui e acolá surgem situações periféricas que denotam a figura central como amargurada por um (ou vários) amor perdido no passado. Tudo ajuda na construção de alguém que respira e transpira.

A primeira incursão de Eryk Rocha (filho do grande Glauber Rocha) no longa-metragem de ficção possui vocação silenciosa, mas, paradoxalmente, é guiada em boa parte por música (apanhado de melodias populares românticas) e sons infiltrados da rua. A fotografia é elemento destacado, tanto no uso do preto e branco rigoroso e granulado que suprime bastante a alegria da solar capital fluminense quanto na opção pelos enquadramentos fechados e hiper fechados. Transeunte é filme formalmente rigoroso, exige do espectador, mas recompensa os embarcados, especialmente na proposta estética.

Ao relevar pequenos gestos, Eryk Rocha arrisca-se em terreno distante da alegoria acentuada das obras paternas, por exemplo, primando por registro bastante particular. O diretor parece tatear em busca de identidade própria, sem prender-se aos grilhões do sobrenome famoso. Como todo artista arrojado, está à mercê de opiniões não favoráveis, de gente que possa até achar seu trabalho pedante ou repleto de auto-importância. A cena final, onde a câmera antes acolhedora parece abandonar aquele que não mais sofre viver, é sintoma de algo sobre esteticismos. De onde posso enxergar, Transeunte parece um longa repleto de energia vital, força criadora e atento ao fator humano, acima de tudo.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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