Crítica

No cinema americano, os blockbusters – como são chamados os campeões de bilheteria – raramente conseguem emplacar também junto à crítica. Mas o contrário acontece, ou seja, os filmes que são muito elogiados e indicados à prêmios geralmente recebem um olhar mais atento do público, arrecadando nas bilheterias às vezes mais do que se esperava. Infelizmente no Brasil isso pouco se dá. Senão, como explicar o fato de que praticamente ninguém foi assistir à Trabalhar Cansa, uma das produções nacionais mais premiadas e elogiadas da última temporada?

Seria fácil apontar causas simplistas. Como, por exemplo, a falta de nomes conhecidos no elenco. Mas e Meu País, estrelado por Rodrigo Santoro, Cauã Reymond e Debora Falabella, que também passou em brancas nuvens pela tela grande? Estas duas produções, além da infeliz similaridade de não terem conseguido se comunicar com uma fatia maior de espectadores, estrearam nacionalmente na quarta edição do Festival de Paulínia, em São Paulo, no último mês de julho. Esse é um evento que ainda precisa ser descoberto pelos cinéfilos e curiosos, pois suas escolhas de melhores pouco – ou quase nada – influenciaram as opções de quem vai ao cinema no Brasil. Uma constatação triste e que clama por soluções imediatas.

Trabalhar Cansa saiu de Paulínia com o Prêmio Especial do Júri (uma espécie de consolação, algo como o “segundo melhor”) e o de Melhor Som. Foi ainda premiado nos festivais de Brasília e de Lima, no Peru. Mas talvez o maior mérito tenha sido a seleção para a mostra Un Certain Regard, no Festival de Cannes. Essa exposição nacional e internacional garantiu ao filme uma grande expectativa. Mas a experiência de vê-lo contradiz qualquer impressão prévia. “Estranho” talvez seja a melhor palavra para defini-lo. E, não sendo como os outros, é natural que encontre em seu caminho opiniões diversas, conclusões contraditórias e, numa mesma medida, aprovações e discordâncias.

Elaborado como um pesadelo kafkaniano enfocado num retrato da classe média nacional, Trabalhar Cansa tem como protagonista o casal Helena (Helena Albergaria) e Otávio (o ótimo Marat Descartes, visto também no surpreendente Os Inquilinos, 2009). Ao mesmo tempo em que ela se prepara para se lançar na iniciativa privada, abrindo um negócio próprio – um pequeno mercado – ele é demitido da grande empresa em que há anos trabalhava. Sem ter o que fazer, e ao invés de ajudá-la, o marido prefere partir para a conquista de um novo emprego, encarando o sacrifício da esposa como algo “menor”, até mesmo humilhante. Sua presença ao lado dela só se dá fora do horário comercial, quando ninguém está por perto – mesmo que não tenha outros compromissos prementes. Essa desestruturação familiar ganha reflexo numa infiltração no imóvel alugado, como se o fator físico fosse apenas uma consequência do que está se passando psicologicamente com os personagens. É um estudo de situações bem delimitadas, e o mais curioso é se imaginar no lugar deles, indagando como reagiríamos diante tais problemas.

Dirigido à quatro mãos pela dupla Juliana Rojas e Marco Dutra, o filme ganha muito com essa divisão, pois percebe-se que a afinidade dos dois realizadores está estampada em todas as decisões da história. A condução dos atores também impressiona, apresentando um elenco coeso e absolutamente naturalista. Trabalhar Cansa é, a despeito de todos os inegáveis méritos, uma obra para poucos admiradores. Somente um espectador diferenciado e bastante seletivo em suas escolhas irá saber reconhecer as influências dos diretores e as referências espalhadas pela história. E mesmo sem agradar a todos, merece toda atenção que vem despertando.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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