Crítica

Vestida e coberta até o pescoço, Dorothy é, aparentemente, a representação do que era esperado de toda mulher por parte de homens machistas na década de oitenta. Porém, basta que abra a boca por alguns segundos e todos entendem que, na verdade, ela é justamente o maior medo destes mesmos indivíduos: forte, determinada e cheia de personalidade, a atriz não se curva sob a batuta de um diretor misógino, não se rende às tendências opressivas do papel da mulher na grande mídia e constrói uma carreira do zero do dia para a noite, provando sua força e talento. Porém, Dorothy não é verdadeiramente uma mulher. Ela é, de fato, Michael, um ator desempregado que, num momento de desespero, traveste-se para conseguir um papel numa novela de sucesso. E assim surge a grande dúvida a respeito de Tootsie, comédia indicada a 10 Oscars, inclusive à Melhor Filme.

Que mensagem pode ser interpretada a partir dessa contradição? No final, se a única mulher forte e determinada o suficiente era um homem, isso quer dizer que elas precisam, portanto, deles para “salvarem o dia”? Ou Tootsie é sobre um homem que, ao se colocar num papel feminino, percebe como é revoltante a posição social em que lhes cabe? Pois, dono de um arco dramático previsível e clichê, o longa de Sydney Pollack por muito tempo vaga perigosamente entre estas duas alternativas, e caso tivesse rendido-se à primeira delas, seria inevitável o show de piadas de mau gosto e um resultado moralmente condenável.

Felizmente, o filme não opta por este caminho. E uma vez devidamente maquiado e vestido de mulher, Michael acaba passando por diversas situações muito engraçadas, principalmente por sabermos que se trata de um homem travestido e que ninguém mais desconfia de sua verdadeira identidade. Porém, caso o mesmo longa fosse feito colocando-se uma mulher de verdade no lugar do nosso protagonista, dificilmente conseguiria arrancar sequer uma risada, pois seria de um mau-caratismo absurdo rir de uma personagem que aceita, por seus modos broncos, ser tratada como uma tiete pelo diretor, profissional esse que não faz nem questão de lembrar de seu nome. Além disso, ela é testemunha velada de um ato de traição e até mesmo vítima de abusos de um colega de trabalho, ousadias sexuais que por pouco não resultam em estupro (!). Então é interessante que, ao mesmo tempo em que nos faz rir, Pollack jamais nos deixa esquecer o quão opressivo o homem, enquanto espécie, pode ser para com seus iguais.

Se hoje os casos de misoginia são menos frequentes, e o racismo e a homofobia, entre outros males, são combatidos com ferocidade, é porque vivemos em uma sociedade muito mais conectada e, portanto, mais apta a denunciar e expor a selvageria cometida por indivíduos que deveriam ser civilizados. Mas não se enganem, este tipo de comportamento nunca morreu, está apenas domado, e depende da nossa constante vigilância para que não deixemos que seus focos se espalhem e que sejam combatidos os que ainda restam. Por isso, de obras sutis como Tootsie às mais incisivas como Filadélfia (1993) – com temas e abordagem muito distintos, mas sobre males parecidos – é necessário que de vez em quando sejamos lembrados sobre o assunto, nem que seja através de um filme.

Talvez somente por levantar este tipo de discussão, a obra em questão já fosse admirável. Mas é fato que, embora temática e moralmente rico, o roteiro de Tootsie é de diversas maneiras previsível. De fato, quando citei que se trocássemos o personagem de Dustin Hoffman por uma mulher o longa se converteria em um drama, pensava na figura vivida aqui por Jessica Lange (premiada com uma estatueta de melhor atriz coadjuvante por sua performance), que faz às vezes da mulher de verdade que realmente deve ter sofrido todos estes abusos e opressões pelos quais Dorothy/Michael passa, sem contar com uma voz ativa e a segurança necessárias para poder reagir, ao contrário do(a) outro(a). Algo que o texto desperdiça ao jamais ousar aprofundar os dilemas da personagem, uma imparcialidade covarde que, claro, explica todas as indicações do projeto ao Oscar, uma vez que a Academia adora indicar projetos bonitinhos que denunciem um problema sem jamais soarem polêmicos. E acredito que foi simplesmente por estar concorrendo contra nomes como Jack Lemmon, Peter O’Toole e Paul Newman que não deram a Hoffman o prêmio de melhor ator, ainda que tenham demonstrado sua indulgência ao premiar Ben Kingsley, por Gandhi (1982).

De qualquer forma, mesmo que não possa passar ileso de questionamentos, Tootsie ainda é uma comédia divertida, carismática e correta. Longe de ser um filme irrepreensível, conta com participações calorosas do próprio diretor, Sydney Pollack, e também de Billy Murray, contido mas nunca imemorável, assim como uma ponta de Geena Davis.

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é formado em Produção Audiovisual pela PUCRS, é crítico e comentarista de cinema - e eventualmente escritor, no blog “Classe de Cinema” (classedecinema.blogspot.com.br). Fascinado por História e consumidor voraz de literatura (incluindo HQ’s!), jornalismo, filmes, seriados e arte em geral.
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