Crítica

Nós somos representantes do povo, e às vezes eles [os políticos] têm que falar sobre coisas que não são necessariamente aquilo sobre o que eles estão a fim naquele dia”, diz o jornalista David Corn em dado momento deste Todos os Governos Mentem. Mas por que eles falariam, afinal? Segundo a lógica traçada por outro dos entrevistados nesse documentário, se todo mundo foge da verdade uma hora ou outra, é óbvio que entidades inteiras submetidas ao escrutínio popular irão mentir regularmente. Basta analisar, por exemplo, um dos dados levantados pela narrativa: segundo a CNN, o Pentágono jamais emitiu uma nota falsa em toda sua existência, já que a rede de notícias nunca mencionou como mentira qualquer uma das vezes em que esse órgão governamental fez declarações intencionalmente erradas. O que é mais provável? Que o Pentágono jamais tenha mentido para a população estadunidense, ou que a CNN tenha sistematicamente evitado dizer isso ao longo dos anos?

O documentário, portanto, parte da ideia por trás de declarações como a que a jornalista Amy Goodman oferece aqui: se um noticiário tem que falar sobre esse ou aquele ramo, o mesmo não pode ser financiado por corporações que atuam nesses ramos. Então, reside no jornalismo independente a esperança de transparência entre a realidade e a população submetida a ela. Ora, mas como assim? A realidade não é aquilo experimentado pelas pessoas no dia a dia? Como elas poderiam não enxergar isso de uma forma transparente? No livro Mídia - Propaganda Política e Manipulação, o notório intelectual Noam Chomsky evoca alguns exemplos, como o número estimado de mortos na Guerra do Golfo, que, segundo pesquisas populares, revelaram ser mais ou menos 200 mil – quando, na verdade, dados oficiais estipulam cerca de 3 milhões de vítimas fatais. Da mesma forma, enquanto o relato de um prisioneiro do governo de Cuba foi amplamente difundido na mídia dos EUA, 340 depoimentos de vítimas de torturas de soldados dos Estados Unidos, que incluíam vídeos, foram solenemente ignorados pelos mesmos meios de comunicação.

Aliás, não é surpresa que Chomsky seja um dos entrevistados pelo diretor Fred Peabody, já que nesse mesmo livro o pensador estabelece duas vertentes sobre o entendimento do que é Democracia: uma teria a ver com o povo unido para tomar as decisões, e na outra, um grupo autodeclarado “especialista”, se encarregaria do futuro da população, cujo papel nesse cenário seria apenas o de apontar quem seriam seus representantes. Chomsky, portanto, aponta que as pessoas por trás desses “acobertamentos”, ou, como ele chama, da “engenharia do consenso” (um método de fazer as pessoas pensarem o que se quer que elas pensem), não são figuras vilanescas reunidas em covis escuros, mancomunando sobre como dominar o mundo. Noam demonstra que, pior do que isso, a elite midiática, governamental e econômica acredita estar realmente exercendo a Democracia (com D maiúsculo), pois crê que sua verdadeira forma é essa segunda vertente apresentada pelo intelectual.

Logo, Todos os Governos Mentem se dedica a estudar as políticas externas dos Estados Unidos e como elas repercutem na grande mídia, já que essas interações oferecem alguns dos melhores exemplos de como o jornalismo independente se faz necessário para que o povo tenha acesso à versão mais bruta possível dos fatos lá fora – e a urgência desse esforço, caso não esteja claro, é facilmente explicada também por Chomsky: munidos de informação, espera-se que a população não se comporte como um “rebanho desorientado”, conforme termo cunhado pelo jornalista Walter Lippmann. Assim, para explicar essa relevância, são trazidos nomes expoentes dessa área, como Amy Goodman, do Democracy Now, Jeremy Scahill, do The Intercept, Glenn Greenwald, que depois de ajudar a divulgar os dados vazados por Edward Snowden, se exilou no Brasil; e ainda, o cineasta Michael Moore, que serve de link ao jornalista I.F. Stone, um dos precursores e figura de destaque desse jornalismo de guerrilha nos Estados Unidos.

O único tropeço de Peabody, então, é trazer todo um outro braço abordando os imigrantes dentro dos EUA, que, igualmente ignorados pela grande mídia, somem da existência. Claro, é importante lembrar que o Jornalismo, antes de servir para contar o que se passa, tem essa importante função de registrar o presente, para que não se perca na memória da sociedade, mas qualquer outro exemplo poderia ter sido usado nesse caso, já que esse destoa do ritmo e tom do restante do longa, interrompendo a linha de raciocínio toda vez que entra em cena. De outro modo, por mais deslocado que possam soar as adorações de Michael Moore ao seu ídolo (Stone), é importante para o filme estabelecer alguns dos pontos que o documentarista traz, como o uso do humor. Ora, basta notar como comediantes como Louis C.K. ou Gregório Duvivier usam de suas piadas para atacarem problemas diretamente cotidianos, e se entende que, às vezes, a sobriedade e a objetividade de um texto jornalístico podem ser tão prejudiciais à função de informar quanto a omissão em si.

O Brasil, aliás, poderia ser facilmente objeto de estudo de um documentário idêntico. Embora não estejamos engajados em políticas externas como os EUA, o uso da grande mídia é tão descaradamente tendencioso aqui, quanto por lá – e, de fato, esse cenário já forçou que os nossos jornalistas criassem seus próprios meios mais independentes, dos quais se destacam exemplos como o El País ou o Nexo. E a relevância do assunto não se esgota com facilidade, pelo contrário, parece cada vez mais urgente que o discutamos, pois, se quando Chomsky escreveu seu livro ele ainda não sabia do que aconteceria depois do 11 de setembro de 2001, nem Peabody que Donald Trump seria eleito quando finalizou o filme em questão, esse mesmo texto que você está lendo, pode, no dia de sua publicação, já estar desatualizado – Trump ainda não atacou a Coreia do Norte, né? Nem Kim Jong-Un revidou com mísseis nucleares, certo? Pelo menos não pelo que o Jornal Nacional nos contou… Correto?

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é formado em Produção Audiovisual pela PUCRS, é crítico e comentarista de cinema - e eventualmente escritor, no blog “Classe de Cinema” (classedecinema.blogspot.com.br). Fascinado por História e consumidor voraz de literatura (incluindo HQ’s!), jornalismo, filmes, seriados e arte em geral.
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