Crítica

Desde seu lançamento, Lawrence da Arábia (1962) se tornou a referência absoluta para filmes sobre a vida no deserto. A relação estabelecida entre qualquer obra com esta ambientação e o clássico de David Lean é imediata, e com O Lobo do Deserto não é diferente. O primeiro longa do cineasta Naji Abu Nowar, britânico de ascendência jordaniana, possui ecos da cinebiografia de T.E. Lawrence, que vão desde locações até a presença de um soldado inglês na trama. Mas diferente do escopo magnificente de Lawrence da Arábia, um épico por excelência, o trabalho de Nowar se utiliza das grandiosas paisagens desérticas para narrar uma história mais intimista, nos moldes do conto de formação.

O longa se passa na província de Hejaz, durante a Primeira Guerra Mundial, e acompanha o garoto Theeb (Jacir Eid Al-Hwietat) que vive em uma tribo de beduínos com seus dois irmãos: o mais velho – que acaba de assumir o posto de líder após a morte do pai, um respeitado xeique – e o do meio, Hussein (Hussein Salameh Al-Sweilhiyeen) com quem Theeb possui uma relação bastante próxima. Quando um misterioso guia surge no acampamento da tribo acompanhando o soldado inglês Edward (Jack Fox), Hussein é designado para guiá-los até um antigo poço romano, e Theeb, sem permissão, decidir seguir o trio.

O ponto de partida é simples e Nowar o desenvolve com muita segurança, apostando na economia de diálogos e explicações. Seu filme se faz entender pelas imagens e pela criação de atmosferas, que transitam por diversos gêneros. Em seu primeiro ato, o longa busca inspiração nos faroestes de emboscada, quando Nowar faz com que, mesmo com a amplidão do cenário, sua narrativa se torne sufocante. Os caminhos estreitos entre as rochas, o poço abandonado, os sons que vêm do alto dos penhascos, são todos signos familiares aos westerns filmados em Monument Valley por John Ford, por exemplo, e que o longa utiliza de maneira exemplar para criar um clima crescente de suspense e tensão latente.

A violência suprimida, presente desde as primeiras cenas – Theeb e Hussein “brincando” com uma faca, o garoto sendo desafiado pelo irmão a matar um bode para o jantar, em seu primeiro rito de passagem – explode de maneira impactante, sempre filmada com uma crueza bastante realista, mas evitando o sensacionalismo. Esse sentimento de veracidade também acompanha o desempenho do elenco, em especial o de Jacir Eid Al-Hwietat como o protagonista. A espontaneidade do jovem ator é fundamental para que o drama de amadurecimento do personagem seja crível tanto nos momentos tensos – a angustiante sequência do tiroteio durante a noite – quanto nos mais dramáticos.

Mesmo bastante exigido, Al-Hwietat corresponde, e o diretor extrai o máximo de sua atuação para mostrar a perda da inocência através do olhar infantil. Theeb é forçado a encarar a realidade da maneira mais dura, embarcando em uma exaustiva jornada que, ao final, transformará sua visão sobre o mundo que o cerca. Através das competentes reviravoltas do roteiro, Nowar mantém parte dos elementos de suspense já trabalhados, incluindo até um McGuffin – a caixa protegida pelo soldado inglês – mas conduz seu filme para o caminho do drama de luta pela sobrevivência, ancorado por uma inesperada relação entre Theeb e outro personagem.

É a partir deste ponto que Nowar expõe de maneira mais incisiva o panorama histórico e político de sua história, pois o peso da interferência inglesa no Império Otomano é sentido por todos os personagens. Os guias beduínos que perdem sua função com o advento dos “burros de ferro” (apelido dado aos trens das ferrovias construídas pelos britânicos), os xeiques que vêem seu poder ameaçado nesta nova ordem e os rebeldes que lutam contra os colonizadores são mostrados como vítimas, em maior ou menor grau, das circunstâncias, e Nowar acerta em não julgá-los, mesmo quando enfrentam grandes dilemas morais. Afinal, em uma região com tantas particularidades, os códigos de honra também são distintos.

Partindo de estereótipos para muitas vezes subvertê-los, o cineasta faz da luta de Theeb pela sobrevivência uma batalha pela preservação de sua identidade. Manter-se fiel às suas raízes é a base para a construção de seu caráter, e esta noção fecha o ciclo iniciado pelo provérbio citado ainda nos créditos de abertura. "Se os lobos oferecerem amizade, não conte com a sorte. Eles não ficarão ao seu lado quando você estiver enfrentando a morte", dizia o pai de Theeb (que significa “lobo” em árabe). E ao final, seguindo seus instintos, o garoto compreende com clareza o significado destas palavras.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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