Crítica

Primeiro longa-metragem de Baya Kasmi, À Sua Completa Disposição carrega consigo os tropeços dignos de uma cineasta estreante, sem jamais conseguir encontrar equilíbrio satisfatório entre o drama e a comédia. Dono de um humor estranho, o filme parece bem-intencionado ao trazer leveza para a história de Hanna (Vimala Pons), uma mulher que herdou do pai a incapacidade de ser rude com qualquer pessoa. Porém, não é raro que o projeto aborde assuntos como a intolerância religiosa ou a pedofilia, encaixando esses tópicos em sua fotografia ensolarada entre uma faixa e outra de sua trilha descontraída, fracassando então em sua tentativa de trazer com esses momentos algum peso para a narrativa.

Hanna cresceu em uma família incomum, com uma mãe extremamente honesta e desapegada de bens materiais, enquanto o pai é um homem de gentileza quase doentia. Depois que o irmão nasce e os dois gradualmente se distanciam, com ele se convertendo como muçulmano, a unidade da família se deteriora, até que, anos depois, se torna necessário que todos se reúnam outra vez quando um deles adoece e precisa de um rim.

Assim, a constante leveza que Kasmi imprime em tela parece desrespeitar as pautas mais sérias, pois não só torna a abordagem sobre elas leviana pela falta de aprofundamento como também as compromete com o clima descompromissado do resto da produção. E não é problema inserir assuntos tão pesados em um filme mais light, entretanto existem outros modos de se fazer isso, trabalhando as transições entre um momento e outro para que eles não se confundam em tela. E é isso que Kasmi não entende, ainda.

Podemos igualmente culpar a inexperiência do cineasta – que também assina este roteiro – pelo abandono da ordem cronológica. Ora, tampouco é algum crime contar uma história fora de sua linearidade, mas espera-se normalmente uma lógica por trás disso. Estamos seguindo o fluxo de lembranças de um personagem como em A Árvore da Vida (2011)? Estamos entrando em flashbacks dentro de flashbacks como em O Grande Truque (2006)? Que linha de raciocínio liga os recortes no qual À Sua Completa Disposição investe? Apesar de algumas cenas realmente remeterem a outras, na maior parte do tempo o filme parece ter todas aquelas informações e não saber onde ou quando despejá-las; por exemplo, qual a função exata da lembrança de Donnadieu (Mehdi Djaadi), em uma sauna, nos minutos finais de exibição?

Mais isso é o de menos, pois o longa ainda apresenta outros momentos inexplicáveis, como aquele em que tenta criar suspense em uma cena no aeroporto, que incita a discussão sobre o papel da mulher nas culturas muçulmanas só para abandona-la segundos depois. Aliás, todo o arco de Donnadieu no terço final é absurdamente maniqueísta, pois sofre mudanças drásticas que ganham soluções ainda mais estapafúrdias e cujas consequências são subitamente ignoradas pelo roteiro, tudo para motivar uma catarse que poderia ter se dado de maneiras muito mais plausíveis. A verdade é que Kasmi, talvez em um surto de "primeirofilmísmo", foge desesperadamente de qualquer solução convencional, esquecendo-se de que, às vezes, elas possuem uma força ímpar. Assim, parece a todo o tempo tentar chamar a atenção do espectador com alguma situação inusitada que ele, aparentemente, considera bastante original: uma conversa constrangedora com uma pessoa nua na sala, um jantar em que se fala sobre prostitutas, uma avó que fuma maconha, e por aí vai.

A coisa é que À Sua Completa Disposição jamais soa tão engraçadinho quanto se julga ser, e apesar de possuir alguns bons momentos e personagens (a mãe vivida por Agnès Jaoui, por exemplo), se torna um exemplar esquecível justamente como consequência de sua tentativa desesperada de ser relevante. Baya Kasmi não é, apesar disso, uma realizadora desastrosa, mas precisa aprender mais, encontrar o espaço correto para cada momento e saber lidar com a navegação entre eles. Sua obra aqui é uma colagem de revistas em que só se consegue ler a chamada de cada matéria. É um mosaico confuso e sem profundidade, que de longe até parece bonito e interessante, mas de perto é realmente vazio e incompleto.

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é formado em Produção Audiovisual pela PUCRS, é crítico e comentarista de cinema - e eventualmente escritor, no blog “Classe de Cinema” (classedecinema.blogspot.com.br). Fascinado por História e consumidor voraz de literatura (incluindo HQ’s!), jornalismo, filmes, seriados e arte em geral.
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