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Sinopse

Uma pianista famosa visita sua filha que mora no interior da Noruega. A artista de renome internacional se depara com uma mulher introspectiva e deprimida. Esse encontro traz à tona velhas mágoas incrustadas no passado.

Crítica

Alguns filmes permanecem na memória do espectador pelos mais diversos motivos, diferenciando-se dos tantos descartáveis que seguidamente surgem em nossos caminhos seja pelo tema, pelo conjunto de atuações ou pela direção precisa de seu realizador. Sonata de Outono, um dos últimos trabalhos do grande Ingmar Bergman feito especialmente para ser exibido no cinema e seu único encontro profissional com a outra artista tão ou mais famosa do que ele com a qual compartilhava do mesmo sobrenome – Ingrid Bergman – encaixa-se neste quesito pela soma destes três fatores. E muito mais.

Ao contrário do que qualquer estudioso da obra de Ingmar poderia apontar, Sonata de Outono não se tornou concreto apenas por se identificar dentro da filmografia do realizador, seja pela história que desenvolve ou ainda pelos elementos narrativos que apresenta. Foi em sua protagonista, no entanto, que tal roteiro repercutiu com ainda mais força. Os dois, que não dividiam parentesco, tiveram uma relação complicada durante a relação deste longa. Ele demonstrava os primeiros sinais de cansaço com a indústria cinematográfica – o que o levou, logo em seguida, a abandoná-la de vez, restringindo-se a partir de certo momento somente ao teatro e à televisão. Ela, por sua vez, descobriu ainda no início das filmagens ser portadora do câncer que a mataria poucos anos depois, com apenas 67 anos. Este é, portanto, seu último filme – faria apenas um telefilme posterior – e serve como uma luva como um testamento maior de tudo que ela fez – seja pela excelência demonstrada – e representou – visto o conteúdo que carrega.

Sonata de Outono é sobre o encontro de duas mulheres – mãe e filha – após sete anos separadas. Ao receber uma carta carinhosa, a mais velha decide ir de encontro a herdeira, numa pequena paróquia onde essa mora, no interior do país. A outra – interpretada magistralmente por Liv Ullmann – espera pela visita com um misto de ansiedade, expectativa e medo. Como se portarão as duas, quando finalmente uma em frente da outra, tanto tempo depois de terem se separado? Se no começo a recepção é feita entre sorrisos e abraços educados, aos poucos essa cortina de cordialidade irá se desfazendo. Uma alfinetada aqui, uma crítica de leve acolá, uma reclamação inevitável surge quando menos se espera. “Você me ama, minha filha?”, pergunta a progenitora no meio da noite, em meio a uma crise de insônia após ser acordada por um pesadelo em que alguém a sufocava com um travesseiro. “Bom, você é minha mãe, não?”, responde a outra, mais numa justificativa do que numa afirmação convincente.

Amar uns aos outros, ainda mais dentro de uma mesma família, parece ser uma obrigação inquestionável. Os Bergman – cineasta e atriz – parecem se perguntar até que ponto isso é, de fato, verdade. A que chega está há anos afastada por conta de compromissos profissionais – é uma pianista de incrível sucesso – relacionamentos amorosos e pura falta de vontade de estabelecer qualquer contato mais duradouro. Abdicar da carreira em nome do marido ou das filhas nunca foi uma opção. E, sim, é preciso notar a pluralidade do termo quanto ao fruto deste casamento: foram duas meninas geradas. Uma que agora a recebe pronta para um acerto de contas que terá repercussões devastadoras. A outra, no entanto, está na mesma casa. Mas por mais que grite, não sabe mais se fazer ouvir. E aquela que carrega essa culpa traz consigo um peso que poucos conseguem suportar.

Eva (Ullmann) também toca piano, e se apresenta com regularidade na missa ou em demais atividades da região. Ao executar uma peça para a mãe apreciá-la, é perceptível a incapacidade desta em aceitar as falhas da outra, reagindo mais como uma competidora do que como alguém com sabedoria e experiência. Ingrid representa no limite de sua capacidade, dando-se ao máximo para uma personagem que tinha muito a ver consigo própria – nos seus áureos anos da juventude, causou polêmica em Hollywood ao abandonar os Estados Unidos e a família para ir viver na Itália com o cineasta Roberto Rossellini. Dar vida à Charlotte Andergast, portanto, certamente não foi uma tarefa fácil. Mas foi um desafio que enfrentou de cabeça erguida e que executou com um louvor absoluto.

Na primeira cena de Sonata de Outono, Eva está em sua escrivaninha, de modo muito pacífico, escrevendo a carta para a mãe. Logo ouvimos uma voz masculina, que explica a situação e nos coloca a par do que está acontecendo. Trata-se de Viktor (Halvar Björk), o marido dela, que se dirige diretamente para a câmera, falando com o espectador. Assim como ele, nós seremos testemunhas deste embate que durará menos de 24 horas, mas cujos efeitos resumirão duas vidas prontas para uma erupção irremediável. “Ela nunca me amou”, ele afirma, “mas sempre gostou de estar comigo, pois afirma que aqui é agradável, onde finalmente sente paz”. A tranquilidade pode ser subestimada diante sentimentos mais explosivos e imediatos, mas nunca substituída diante uma tempestade que não permite prever qualquer tipo de bonança. E poucas vezes Ingmar Bergman deixou isso tão claro.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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