Crítica

Até que ponto conseguimos pensar melhor na vida e no modo como a levamos uma vez fora do contexto no qual estamos inseridos dia após dia? Essa parece ser a grande questão por trás de Sobre Viagens e Amores, primeiro longa que o diretor Gabriele Muccino faz em sua terra natal em quase uma década. E a motivação de voltar para casa é semelhante a que serve ao protagonista, um jovem prestes a enfrentar a dura realidade do mundo adulto, a estender ao máximo esses últimos momentos de alegria e quase fascínio pelo aqui e agora. Se Muccino encontrou alguns percalços em suas passagens por Hollywood e retornar representa também mais segurança e controle, para Marco esta vontade significa soltar-se no mundo em busca do inesperado e da gratificação que apenas a surpresa proporciona. Caminhos inversos, porém com resultados semelhantes.

Talvez seja por isso que Sobre Viagens e Amores acaba funcionando tão bem: o discurso aqui é feito com paixão e conhecimento de causa. Marco (Brando Pacitto, em seu primeiro papel de destaque no cinema) está, literalmente, perdido. As aulas acabaram, os amigos viajaram e ele não sabe o que fazer, tanto com o calor de Roma como com seus próximos dias, meses, talvez até mesmo anos. Dois episódios aparentemente aleatórios – um atropelamento e uma chamada por Skype que não pode ser evitada – o colocam, no entanto, ao lado de uma menina que pouco conhece (Matilda Lutz, de O Chamado 3, 2017) em um avião rumo à Califórnia, EUA. Os dois são opostos – ele descompromissado e tranquilo, ela estudiosa e preocupada. Em comum, a vontade de mudar de ares. E ainda que as coisas se desenrolem tão bem quanto imaginavam num primeiro momento, a convivência forçada em um outro país irá forçá-los não apenas a lidar com as diferenças, mas também a aprender como encontrar o melhor de cada um.

Porém, se uma viagem que promete ser garantia de pura diversão e novidades já começa desse modo truncado, outro elemento inesperado é acrescido à mistura: o amigo que deveria esperá-los acabou preso em um outro compromisso. No seu lugar, Paul (Joseph Haro, que chegou a participar de alguns episódios da série Glee, 2011-2012) e Matt (Taylor Frey, de G.B.F., 2013) os recebem a pedido do conhecido em comum. Estes dois, no entanto, são um casal. E se para Marco estar na presença de gays representa justamente a diversidade esperada, quase como um mundo de possibilidades que se abre a sua frente, para Maria o choque talvez seja maior do que estaria disposta a suportar. Temas como homofobia, religião e formação de novas famílias entram em pauta, elevando uma comédia de costumes, leve e despreocupada, a um patamar pouco frequentado por produções do gênero. E o melhor: não são apenas citações desconexas, prontas para serem descartadas. Pelo contrário, elas reverberam entre os personagens e nas relações que estabelecem, favorecendo o diálogo e as interações entre eles a partir de cada nova reflexão.

O cartaz original de Sobre Viagens e Amores anuncia: “ele ama ela, ela ama ele, ele ama ele”. Há um pouco da Quadrilha de Drummond, é claro, mas ela não é determinante a ponto de se tornar primordial na condução da trama. Maria é uma garota bonita, e Marco seria tolo se por ela não se sentisse atraído, ainda mais após deixar clara sua condição de heterossexual – que não interfere em nada, importante que fique claro, sua simpatia pelo casal gay e pelo estilo de vida desses. Marco é um menino do mundo, e cada uma dessas vivências está lhe ajudando a formar uma nova visão da realidade que o circunda. Já ela é insegura, tem muitas pontes ainda a construir, e parece privilegiar rivalidades em busca de um elo fraco. Esse ela irá encontrar em Matt, aquele mais inseguro de sua condição – já teve uma relação duradoura com uma mulher, está insatisfeito com o próprio trabalho e também está, do seu modo, atrás de mudanças. E essas chegarão, felizmente não de modo previsível ou conforme visto em narrativas similares.

É neste ponto, acima de qualquer outro, que se percebe o talento de Muccino. Diretor de filmes aclamados como O Último Beijo (2001) e À Procura da Felicidade (2006), andava nos últimos tempos engessado em Hollywood, trabalhando em títulos protocolares como Sete Vidas (2008) e Um Bom Partido (2012). Aqui, no entanto, o percebemos mais seguro de si, expondo sem pressa como a vida destes quatro irá mudar – para sempre, talvez? – após estas semanas partilhadas. Mais do que a respeito de um verão que dificilmente será esquecido, Sobre Viagens e Amores fala ao ingênuo que cada um de nós já teve dentro de si, por instantes ou mesmo anos, e como saber preservá-lo é importante para a construção da pessoa que almejamos ser no futuro. Somos, afinal, a soma do que vivemos ou o aprendizado do que deixamos para trás? Provavelmente, um pouco dos dois, e é justamente se dar conta disso a melhor parte do processo.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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