Crítica

O comportamento testemunhal da câmera do cineasta romeno Cristi Puiu é apenas um dos elementos que compõe a exímia encenação naturalista de Sieranevada. O protagonista, Lary (Mimi Branescu), é um médico de meia idade, que inicialmente se desloca com a esposa até a importante reunião na casa de sua mãe. A conversa que ocorre no trajeto já dá uma boa ideia do tipo de dinâmica que entrelaça os personagens mais adiante. Em meio a banalidades, como a discordância quanto à fidedignidade de um vestido infantil à versão Disney da Branca de Neve, se desprende o sumo daquela relação em particular, com os rompantes de cólera da esposa colidindo com a superficial calma do marido. Uma vez na casa de Nusa (Dana Dogaru), a matriarca ainda enlutada pela recente morte do seu companheiro de tantos anos, o casal se depara com uma série de questões de cunho doméstico, mas não só, já que determinados papos demonstram preocupação com a situação político-social, principalmente a da Romênia.

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É impressionante a capacidade de Cristi Puiu de mover-se com desenvoltura por aquele espaço exíguo, observando o vai e vem dos familiares pelos cômodos, capturando instantes aparentemente aleatórios, de tão naturais, mas que, provavelmente, são fruto, no mínimo, de uma rigorosa marcação e de muito ensaio. No começo não ficam bem claros os papeis de cada um, algo resolvido paulatina e organicamente no transcorrer dos conflitos. A espera pelo padre convidado atrasa o almoço, aumentando ainda mais a tensão que naturalmente paira no ar. Aliás, é exatamente numa discussão acerca do papel da igreja e do comunismo, esta ideologia defendida ferrenhamente pela senhora Evelina (Tatiana Iekel), militante que não poupa ataques à conduta religiosa na sociedade local, que as coisas começam a esquentar, de fato. Há bastante humor em Sieranevada, pois, em diversas passagens, até mesmo numas que parecem irremediavelmente fadadas ao drama, sobra espaço para a descontração e a ternura.

Num instante as pessoas estão debatendo banalidades relativas à família, no outro a pauta é a teoria da conspiração sobre a “verdade” por trás dos ataques ao Word Trade Center. Recai nos ombros de Lary, como filho mais velho, a responsabilidade de intervir nas argumentações mais acaloradas, que colocam brevemente em lados opostos irmãos, primos, sobrinhos, etc. Valendo-se de características humanas praticamente universais – expediente responsável por promover uma rápida identificação do espectador – o cineasta consegue a proeza de acumular personagens com resultados bem expressivos, sem fazer de qualquer um deles mero adereço. Em várias cenas de Sieranevada o ponto de vista permanece inalterado, sendo o movimento uma decorrência da transição das pessoas entre os espaços. A rara utilização de elipses deflagra a opção por dotar o tempo diegético de um transcorrer próximo ao da realidade.

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À grande quantidade de temas que surgem nos intercâmbios familiares de Sieranevada sobrevém o drama particular de Larry, responsável por uma ligeira alteração no tom da narrativa à certa altura, inclusive por deslocar a ação para fora da casa. É um instante de intimidade e confissão que traz camadas mais melancólicas ao filme. Traições, diferenças de pensamento, velhas mágoas sedimentadas pelos anos, são alguns dos componentes desprendidos das conversas, ora afetuosas, ora exaltadas. A despeito de suas quase três horas, a realização de Cristi Puiu possui um dinamismo latente, em grande parte fruto da minuciosa decupagem. Outro ponto à excepcionalidade do resultado é o desdobramento dos assuntos em pauta. Fala-se muito, nessa ilusória banalidade de um dia em família. A profundidade e a complexidade são, assim, condicionadas pela habilidade de Puiu para, primeiro, criar uma encenação rigorosa e, segundo, camufla-la com o poderoso véu da espontaneidade.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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