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Sinopse

O atropelamento de uma criança por uma garçonete em Los Angeles, EUA, dá início à construção de um painel sobre essa cidade tão singular. Casais que não se entendem, famílias desestruturas e mais em oito pequenos contos ligados.

Crítica

Uma mosca na parede. Era como o diretor Robert Altman queria que os espectadores se sentissem ao acompanhar um de seus filmes. Éramos, afinal de contas, testemunhas de cenas tão particulares, tão corriqueiras e naturalistas, que não raro nos sentíamos intrusos. Como se não pudéssemos estar ali, ao lado de um casal em crise, ou de uma família disfuncional, sem chamar a atenção para nossa presença. Este sentimento de imersão em vidas tão próximas da realidade era um dos predicados mais destacáveis da carreira do cineasta norte-americano, conhecido até então por clássicos como o satírico M.A.S.H. (1970) e o múltiplo Nashville (1975). Na década de 1990, o diretor nos brindou com dois de seus melhores trabalhos: o crítico e divertido O Jogador (1992) e o magistral Short Cuts: Cenas da Vida. Ambos são excepcionais, ainda que seja inegável a contribuição maior deste último para o cinema vigente naquela década. Sua estrutura multiplot ressoou fortemente, muito embora já tivesse sido usada pelo próprio diretor anos antes, em Nashville.

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A trama é assinada por Altman ao lado de Frank Barhydt, baseada nos contos de Raymond Carver, na qual acompanhamos a vida de mais de 20 personagens em um curto período de tempo. Enquanto aviões com pesticida sobrevoam a cidade em resposta à infestação de moscas de fruta, as vidas de tantas e tantas pessoas se complexifica a cada novo minuto. Stormy (Peter Gallagher) é um dos pilotos destes helicópteros e é o ex-namorado repulsivo de Betty (Frances McDormand), homem que vive a atrapalhando e a perseguindo, usando seu filho como desculpa. Betty tem um caso com o policial casado Gene (Tim Robbins), que dá desculpas cada vez mais furadas para sua esposa, Sherri (Madeleine Stowe). Ela é irmã da artista plástica Marian (Julianne Moore) que, por sua vez, é casada com o doutor Ralph (Matthew Modine). Durante o concerto da violoncelista Zoe (Lori Singer), o casal conhece Stuart (Fred Ward) e Claire (Anne Archer) e, muito espontaneamente, marca um jantar para dali alguns dias. Stuart vai sair para pescar com seus amigos Gordon (Buck Henry) e Vern (Huey Lewis) e prometeu um peixe para a ocasião. No entanto, a pescaria pode não dar muito certo quando eles encontram o corpo de uma mulher no ermo local onde acamparam.

Antes de partir para a viagem, no entanto, o trio faz uma parada obrigatória para um café da manhã na lanchonete onde Doreen (Lily Tomlin) atende como garçonete. Ela é namorada do motorista de limusine Earl (Tom Waits) e os dois vem aos trancos e barrancos com seu relacionamento. A filha deles, Honey (Lily Taylor), e seu namorado Bill (Robert Downey Jr.) ficaram de cuidar da casa dos vizinhos e se aproveitam do espaço para receber seus amigos, o cuidador de piscinas Jerry (Chris Penn) e sua esposa, a atendente de ligações eróticas Lois (Jennifer Jason Leigh). Dentre as piscinas que Jerry cuida está a do casal Anne (Andie MacDowell) e Howard (Bruce Davidson), que estão preparando a festa de aniversário de oito anos de seu filho, Casey (Zane Cassidy). No entanto, um acidente grave com o garoto tende a mudar tudo. Até uma reaproximação com o avô da criança, o bonachão Paul (Jack Lemmon), acaba por acontecer. A vizinha do casal, a supracitada Zoe, se preocupa com a condição da criança, embora tenha problemas em sua vida com a desconexão com sua mãe, a cantora de boate Tess (Anne Ross).

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Dar conta de todas as pontas da trama de Short Cuts: Cenas da Vida requer uma boa memória ou anotações precisas a respeito da ligação de cada uma dessas figuras. O brilhantismo do trabalho de Robert Altman está na construção desse emaranhado de ligações e nas características muito humanas de seus personagens. Para o diretor, importante é que o espectador enxergue em seu filme situações e pessoas que poderiam muito bem viver entre nós, com problemas mundanos, personalidades tortas e objetivos nada gloriosos. Veja Stormy, por exemplo. Ele é um sujeito que passa a trama toda azucrinando a vida de sua ex-mulher. Quem não conhece alguma história sobre alguém assim? Ou a errática situação de Doreen e Earl, um casal já na meia-idade que não consegue se acertar por conta do ciúme e do vício daquele homem. Ou a relação fria entre mãe e filha que poderá gerar um evento irreversível quando falamos de Zoe e Tess. Relação essa completamente inversa quando vemos na casa ao lado o carinho de Anne pelo seu filho Casey.

Robert Altman nos dá a oportunidade de acompanhar instantâneos da vida, como se fôssemos testemunhas oculares privilegiadas. Um exemplo perfeito disso são as discussões dos casais. Elas são viscerais, acaloradas, intensas. Em uma delas, Julianne Moore não se dá o trabalho de vestir suas roupas para brigar com seu marido, mostrando que já não existe muita sensualidade naquela relação. Ou a discussão que se dá entre Fred Ward e Anne Archer quando ela descobre a ação de seu marido quando ele encontra o corpo de uma mulher durante sua pescaria. Talvez a conversa pós-sexo menos corriqueira, mas que também mostra uma faceta nada glamorosa de um relacionamento longevo. Altman vai permeando sua história com momentos como estes, nos dando um vislumbre do que poderiam ser tantas e tantas vidas reais.

O elenco de Short Cuts: Cenas da Vida é de fazer inveja a qualquer um. São poucos os diretores que conseguiriam tantos nomes importantes para defender personagens que, em última análise, são pequenos no todo. Não existem protagonistas aqui. O microcosmo criado por Altman é o personagem principal, com cada um daqueles interessantes personagens vivendo naquele ambiente. Claro que existem histórias mais curiosas do que outras e atores mais notáveis. Um bom exemplo disso é a presença de Jack Lemmon, que surge no hospital onde seu neto está internado e mexe com o status quo de tudo. Há muitos anos sem falar com o filho, o comentarista de tevê Howard, Paul encontra naquele momento conturbado uma chance de reatar relações. Ele não vê, mas este está longe de ser um período propício para isso, colocando Howard em uma situação desconfortável, para dizer o mínimo. Outro núcleo destacável é protagonizado por Tim Robbins, como um policial mequetrefe que desejava paz em sua casa. Odiando o cachorro dos filhos, ele dá um jeito de abandoná-lo na rua, apenas para perceber que a ausência do mascote incendiou ainda mais os ânimos em seu lar. Suas ações são terríveis, com Robbins sendo detestável na medida.

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Embora possam parecer exageradas, as três horas de duração de Short Cuts: Cenas da Vida passam muito rápido. Ajuda a trama dinâmica, que fragmenta a história nos deixando curiosos pelo desenrolar das situações. Também o elenco de alto nível e os personagens desenhados deliciosamente por Altman e por Frank Barhydt. A trilha sonora cheia de jazz é um atrativo a mais e o terceiro ato guarda surpresas interessantes, como um desastre natural que une ainda mais as tantas pontas da trama – e que Paul Thomas Anderson parece ter se inspirado para construir o igualmente imperdível Magnólia (1999). Depois de ter usado o recurso em Nashville e ter retornado a ele em Short Cuts, Altman trabalharia com multitramas em alguns de seus filmes seguintes como o subestimado Prêt-à-Porter (1994), o premiado Assassinato em Gosford Park (2001) e o derradeiro A Última Noite (2006). Para quem deseja ver um mestre em ação, conseguindo concatenar tantos personagens e histórias, Robert Altman é o nome a ser procurado. E Short Cuts um de seus trabalhos mais festejados.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista, produz e apresenta o programa de cinema Moviola, transmitido pela Rádio Unisinos FM 103.3. É também editor do blog Paradoxo.
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