Crítica

A câmera vai se afastando para revelar a mesa na qual uma senhora, já com seus sessenta e tantos anos, observa fotos antigas e conta histórias sobre as pessoas retratadas. Se a textura da imagem, em vídeo digital, causa estranhamento, a temática familiar e relacional não deixa dúvida: trata-se de um Ingmar Bergman. É a abertura de Saraband, o último longa do diretor, feito para a TV sueca.

A mulher em questão é Marianne (Liv Ullmann). Ao decidir visitar Johan (Erland Josephson), seu ex-marido que não vê há 30 anos, ela acaba descobrindo muito sobre a família do antigo amor, ele que agora já possui netos. Das relações entre as pessoas, suas dificuldades e angústias, nasce uma trama que acaba por fazer com que Marianne descubra faces de si mesma que acreditava perdidas.

Nada mais Bergman, portanto. O tema familiar e a investigação psicológica dos personagens atingem aqui um de seus ápices, fazendo frente a trabalhos do calibre de Sonata de Outono. Não por acaso, a presença da música ocorre novamente: se no filme de 1978 era o piano que descortinava a complexa relação entre mãe e filha, agora é o violoncelo que une (ou distancia) pai e filha no compasso de uma sarabanda, estilo de composição utilizado por autores como Bach, por exemplo.

No caso, esse pai é o carrancudo Henrik (Börje Ahlstedt), massacrado pela vida. Filho de Johan, ele tenta fazer com que a filha, Karin (Julia Dufvenius), ainda entrando na vida adulta, tenha a mesma dedicação e paixão que ele pelo instrumento. 

Bergman nos mostra essa relação pelos olhos de Marianne, o que é uma mudança interessante se pensarmos que em geral o diretor apresenta o conflito de um ponto de vista neutro ou imparcial. Por outro lado, a decupagem segue dando espaço para os atores e cenários, só cortando quando necessário e permitindo que o espectador se demore sobre os detalhes que bem entender. A fotografia, "lavada" pela textura do vídeo digital, acaba vibrando nas cores do outono (tinha que ser outono!) sueco.

Graças à escolha de alguns detalhes, atores e nomes de personagens, muito se fala sobre o filme como sendo um spin off da série Cenas de um Casamento (1973), dirigida por Bergman para a TV sueca. A semelhança, no entanto, ocorre apenas por meio desses easter eggs plantados pelo diretor: Saraband funciona sozinho como filme e sua narrativa é fechada em si mesma. Ainda que a existência da série seja ignorada, é possível compreender o filme em sua integralidade.

Mais do que uma obra obrigatória para os fãs do inesquecível diretor, Saraband é um profundo, dolorido e, todavia, interessante estudo das relações humanas, da formação do caráter e de como, apesar de tudo mudar, a vida sempre dá seu jeito de se repetir. Um trabalho de gênio, do tipo que só Bergman é capaz de entregar.

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é jornalista, mestre em Estética, Redes e Tecnocultura e otaku de cinema. Deu um jeito de levar o audiovisual para a Comunicação Interna, sua ocupação principal, e se diverte enquanto apresenta a linguagem das telonas para o mundo corporativo. Adora tudo quanto é tipo de filme, mas nem todo tipo de diretor.
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