Crítica

O ser humano é um bicho complexo, quiçá o mais complexo de todos. A arte sempre se pôs a investigar com profundidade os meandros do comportamento humano, tão difícil de descrever e entender quanto sua própria natureza. Possuímos códigos em comum, como a moral e a ética, espécie de legislação não escrita, série de comportamentos que se fazem necessários, ainda mais quando há contextualização do homem como animal social, que divide espaço com outros de sua espécie. Nossa intimidade é cada vez menor, nosso espaço particular é reduzido em prol da construção de algo maior, desta teia chamada sociedade. Os grandes filmes são aqueles que tentam dar conta desta variedade de comportamentos, que não nos deixam facilmente classificáveis, inteiramente justificáveis e muito menos totalmente compreensíveis.

Pier Paolo Pasolini, cineasta italiano controverso, parece querer com Saló ou Os 120 dias de Sodoma expandir a individualidade, nem que para isso precise aflorar perversões e experiências masoquistas, nesta busca de libertação. Libertação esta que vem, é bom dizer, não somente aos que torturam. Sob um olhar mais superficial, pode parecer uma ode a violência, ao lado mais perverso da alma humana, afinal de contas não é sempre que vemos sodomizações, pessoas se alimentando de fezes, outros sendo obrigados a ingerir alimentos cheios de pregos ou mesmo forçados a urinar em seus algozes para que estes alcancem o êxtase. O prazer, aliás, é o conduto pelo qual os personagens parecem chegar a uma espécie primitiva de virtude libertária.

Ainda que Saló ou Os 120 dias de Sodoma seja um filme muito mais para ser sentido do que racionalizado, há de se entender que Pasolini, fiel a seus ideais e às batalhas que travava diariamente contra o preconceito e o sistema, ataca os poderes instituídos como responsáveis por disseminar ainda mais as ideias que fazem da sociedade esta coisa predominantemente vazia. Os torturadores principais são representantes destes poderes que criam as regras, e suas presenças nada mais são do que a tentativa de Pasolini de mostrar o que eles fazem conosco, utilizando para isto a metáfora extrema que carrega o filme.

Creio que muitos não chegariam nem a metade caso se propusessem assistir Saló ou Os 120 dias de Sodoma, não tanto pela violência gráfica da imagem que oprime quem assiste, ora causando náuseas, ora despertando incomodamente uma pulsão sexual incivilizada, mas pelo clima, pela maneira brutal como a forma entra em simbiose com a fábula. Aberração, quimera cinematográfica, Saló ou Os 120 dias de Sodoma é uma obra de extremidades que, paradoxalmente, evoca o poder da palavra, sobrepondo ele ao da imagem, já que mesmo com mulheres e homens nus a sua disposição, as pessoas só se excitam de verdade ao ouvirem relatos, imaginando situações para depois pô-lasem prática. Aliás, em todo filme é sintomático este relevo da palavra.

Complexo e polêmico, bem ao estilo de Pasolini, Saló ou Os 120 dias de Sodoma é forte no alcance de suas intenções, pois nos mostra que o humano é bem mais do que amor e necessidades básicas. Ele, o humano, é tão multifacetado que nem mesmo o mais competente estudo, ou mesmo a mais brilhante obra de arte, pode chegar à utopia da definição. Cada coisa é uma partícula da tentativa, nesta busca eterna. Não por acaso, Saló ou Os 120 dias de Sodoma possui até uma bibliografia essencial como parte de seus créditos iniciais, coisa que nunca tinha visto em minhas experiências cinematográficas.

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