Crítica

O cinema está recheado de histórias em que escritores dão vida a seus personagens. Um dos exemplos mais recentes é o ótimo Mais Estranho que a Ficção (2006), em que o personagem principal (Will Ferrell) descobre ser também o protagonista da obra de uma escritora (Emma Thompson) que quer matá-lo, e ele tem que descobrir uma maneira de impedi-la. Da mesma maneira, não faltam garotos e homens que querem criar a mulher perfeita, mesmo que seja através de uma máquina, como em Mulher Nota Mil (1985). Porém os dois nerds que a criam começam a ter muita dor de cabeça com a personalidade liberal e libertária de sua deusa. Pois pode-se dizer que Ruby Sparks: A Namorada Perfeita, novo filme dos diretores de Pequena Miss Sunshine (2006) faz uma mescla destas duas ideias, mas elevando os conceitos a outros patamares em que o criador tem total controle sobre sua criatura.

Na bela cena de abertura do longa, vemos uma mulher de cabelos ruivos, contra o sol, sem podermos identificar seu rosto, falando sobre um sapato perdido. Uma Cinderela contemporânea. Logo descobrimos que ela faz parte de uma série de sonhos de Calvin Weir-Fields (Paul Dano), escritor de um sucesso só que está em uma eterna crise criativa. Ele vive recluso, sem amigos, tendo contato apenas com o cachorro, o irmão Harry (Chris Messina, de Vicky Cristina Barcelona, 2008), que vive lhe dando pontapés de realidade, e seu terapeuta (Elliot Gould, o eterno pai de Ross e Monica do seriado Friends). O especialista é quem lhe dá ânimo para escrever o que quiser tendo a protagonista de seus sonhos como a principal personagem de sua história. Após escrever por vários dias, em uma manhã ele acorda e está morando com a tal Ruby Sparks, a simpática garota de cabelos avermelhados. E o melhor (ou pior): ela é de carne e osso (na pele de Zoe Kazan, de Simplesmente Complicado, 2009).

Apesar de uma confusão inicial em que o autor não sabe se a menina pode ser vista por todos, logo ele a assume como sua namorada perante o irmão e todos os (poucos) que estão à sua volta. Mas assim que Calvin começa a perceber um certo grude de Ruby, ele manda (ou melhor, escreve) que ela deve ficar um pouco afastada de seu apartamento. Sentindo falta de sua criação apaixonada, ele volta a escrever e manda que Ruby nunca se afaste dele. O que realmente acontece. Até demais. E assim Calvin segue fazendo para, após várias tentativas, construir uma relação que está fadada ao fracasso. Afinal, Ruby não tem uma personalidade própria: ela só faz o que seu criador quer. A qualquer momento o relógio pode bater à meia-noite e a garota perder a vida que tem.

A discussão colocada nesta distorcida história de amor é o que qualquer parceiro, namorado(a), marido, esposa – enfim, todo mundo – já parou para pensar ao menos uma vez na vida: afinal, por que ele/ela não faz tudo que eu quero/preciso? Assim a nossa relação vai dar certo! Só que, na realidade, todos sabem que é exatamente o contrário. Calvin tem muitas semelhanças com Lars, o personagem principal de A Garota Ideal (2007) com Ryan Gosling como protagonista. É uma pessoa tão solitária, tão avessa ao mundo, que sua única relação séria (e que, pasmem, durou cinco anos) foi com outra escritora, Lila (a belíssima Deborah Ann Woll, mais conhecida como a Jessica de True Blood). O escritor nunca soube enxergá-la de verdade e demonstrar o que sentia, pois é tão antissocial que é incapaz de manter uma simples e descartável conversa com algum fã em um evento sobre sua obra. Mesmo a relação com a mãe (a ótima Annette Benning, de Minhas Mães e Meu Pai, 2010) e seu padrasto (Antonio Banderas, em participação excepcional) é algo confuso, como se houvesse uma mágoa profunda com sua família que não o permite aprofundar laços com qualquer um.

Paul Dano, que já tem feições fora do comum e sempre interpreta personagens exóticos, dá o tom certo à profundidade emocional de Calvin. Zoe Kazan, que é a roteirista do filme, conhece melhor do que ninguém sua personagem principal e consegue passar com credibilidade a comédia e o drama da multifacetada personalidade de Ruby.

Quando o filme foi anunciado, o peso de conceber um novo Pequeno Miss Sunshine deve ter sido um fardo para os realizadores Jonathan Dayton e Valerie Faris. Peso que conferiu críticas positivas e algumas extremamente negativas sobre Ruby Sparks. Uma injustiça. Este trabalho seguinte pode não ter o mesmo frescor do anterior, mas com certeza é recheado de qualidades. Aqui o gênero comédia romântica revive antigos ares em que nada é tão óbvio – inclusive, a todo momento nos perguntamos o destino final do casal. Afinal, Ruby e Calvin vão superar seus problemas? Ela vai se libertar e ter uma personalidade própria, longe da síndrome do sapatinho de cristal e da carruagem que vira abóbora? E o principal: o escritor vai querer fazer isso para ter uma relação de verdade em sua vida? As respostas podem ser duras e sensíveis ao mesmo tempo. Depende do romantismo de cada um.

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é crítico de cinema, apresentador do Espaço Público Cinema exibido nas TVAL-RS e TVE e membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista e especialista em Cinema Expandido pela PUCRS.
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