Crítica

Um mistério. A femme fatale que carrega segredos obscuros. O investigador preso em uma teia conspiratória. Todos esses elementos compõem a fórmula básica do film noir, e é seguindo parte dessa fórmula que a chinesa Vivian Qu estreia na direção com Rua Secreta. Utilizando uma roupagem neo-noir, Qu realiza uma contundente reflexão sobre os limites da tecnologia como ferramenta de vigilância e aponta suas lentes para a situação política e social da China contemporânea.

Quem guia o olhar do espectador na trama é Li Qiuming (Yulai Lu), estagiário em uma empresa de cartografia digital, cujo trabalho é mapear as ruas da cidade de Nanjing para manter o sistema atualizado. É ele quem assume o papel de detetive da vez, ao se deparar com uma rua sem saída não cadastrada, a Rua Floresta, na qual encontra a bela Guan Lifen (Wenchao He), a misteriosa dama fatal da história. Obcecado pela garota, o jovem cartógrafo passa a investigar o segredo da rua fantasma.

Tomando lições dos grandes mestres do gênero, de Hitchcock a De Palma, Qu sustenta seu suspense ao mesclá-lo a outros elementos, como o romance. A cineasta mantém a constante aura de mistério, mas foca boa parte de seu tempo na relação entre Qiuming e Lifen. A estratégia funciona, pois o romance entre os personagens é cativante, dividindo a atenção do público e tornando a reviravolta de seu terceiro ato mais impactante.

A partir do momento em que a trama passa a envolver oficiais do alto escalão do governo chinês – sem revelar muito sobre seus desdobramentos – Qu faz com que suas observações políticas, antes discretas e pontuais, tornem-se diretas e incisivas. Cenas anteriores, como a da reunião de trabalho do pai de Qiuming – editor-chefe de uma revista feminina que possui apenas homens de meia idade em sua equipe – ou a sequência em que os cartógrafos são confundidos com empreiteiros e perseguidos por moradores de um conjunto habitacional prestes a ser demolido, ganham significados mais amplos.

Da mesma forma, o jogo se inverte para Qiuming, que mantinha um emprego paralelo instalando câmeras de segurança ilegais e agora se torna alvo da vigilância. Com isso, a diretora encontra espaço para debater as arbitrariedades cometidas pelo seu governo na busca pela segurança de Estado, bem como para expor as fragilidades da era tecnológica, que escancara a privacidade da sociedade e gera a paranoia. Algo que Qu mostra de forma precisa quando Qiuming vai buscar uma foto digitalizada e descobre que esta já havia sido retirada por outra pessoa, mesmo ele tendo o recibo em mãos. Nos dias atuais não há garantia de segurança nem para as coisas mais banais.

A câmera de Qu, sempre em movimento e apegada aos detalhes, exala toda a urgência de suas pautas e registra com perfeição a transformação de seu personagem principal. Nesse ponto deve-se destacar também a atuação de Yulai Lu como Qiuming. Um jovem inquieto e cheio de vida, que vê o mundo a sua volta ruir e é tomado pela desilusão. Nada é como antes em sua vida. As câmeras do parque ou do shopping onde sua mãe trabalha se transformam em ameaças. Os macacos do zoológico agora temem e se escondem do público que os observa. Até o mesmo o retorno ao “carrinho bate-bate” ganha um novo simbolismo. Na primeira vez temos a imagem lúdica, ao lado de Lifen, em que Qiuming persegue sua paixão. Na segunda, triste e sozinho, apenas acompanhando de estranhos que insistem em bater em seu carro, Qiuming é o perseguido.

Ao final, Qu parece apontar que a esperança ainda pode ser encontrada no amor. Mas este sentimento logo se desfaz, pois no reencontro com a mulher de seus sonhos, o medo e a insegurança já estão impregnados na memória Qiuming. “Por um futuro melhor”, dizia a faixa pendurada no muro em ruínas do prédio em demolição. Em Rua Secreta, esse futuro não parece ser tão otimista.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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