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Sinopse

Ao tentarem atravessar as terras de uma condessa, um grupo de ciganos é expulso violentamente do lugar. Em meio a confusão, a menina Reka é raptada e passa a trabalhar de servente na casa da inescrupulosa dona daquela propriedade. Inconformada, sua amiga Kaia abandona o grupo cigano e volta para resgatar a amiga.

Crítica

Os primeiros minutos desta estreia em longas da cineasta Julia Zakia podem enganar o espectador. Com uma câmera solta, acompanhando em detalhes o cotidiano de um grupo real de ciganos, a impressão inicial é de que uma abordagem quase documental será utilizada. Não demora muito, porém, para que Zakia deixe clara a sua verdadeira proposta, que não poderia ser mais distante desta imaginada anteriormente. A partir da primeira aparição de Baka (Leuda Bandeira), a velha feiticeira cigana, que conta sobre a lenda das mulheres-lobas para as duas garotas que se tornarão as protagonistas do longa, Kaia (Sielma Ferraz) e Reka (Ciça Ferraz), adentramos o terreno da fantasia, para não mais sairmos.

Conseguindo com muita habilidade traduzir em imagens a tradição oral cigana, Zakia utiliza uma trama central aparentemente simples para criar um universo místico, com regras próprias e bastante peculiares. Nesta história central, o grupo já citado de ciganos, ao tentar atravessar as terras de uma misteriosa Condessa (Georgette Fadel), acaba entrando em conflito com o Conde (Ricardo Puccetti) e seus capangas. Neste confronto, Reka se perde de seus pais, sendo encontrada mais tarde pela Condessa, que suga a juventude da menina. Assumindo imediatamente sua forma adulta (quando é vivida pela própria diretora do filme), Reka é feita de criada e levada para o casarão dos donos da fazenda.

Filmando em sua maior parte no Estado de Alagoas, mas também com cenas rodadas no interior de São Paulo, Sergipe, Sérvia, Eslováquia, Bósnia e Hungria, Zakia cria uma ambientação geograficamente indefinida e atemporal. Características que são fundamentais para o desenvolvimento de sua narrativa fabular, na qual tempo e espaço são moldados livremente sem preocupações com a realidade. A belíssima fotografia de Adrian Cooper, que ressalta o contraste das cores do mundo cigano (roupas, joias, carroças, tendas, etc.) com a paisagem árida do sertão alagoano, mesclado os registros em Super 8 do leste europeu, feitos pela própria diretora, reforçam o ar onírico de todo o longa.

Em um trabalho extremamente visual, Zakia demonstra grande talento para a composição de quadros poderosos e carregados de subtextos, que surgem especialmente quando a trama ganha contornos de conto de horror barroco/gótico. Dentro de sua miscelânea mítica e folclórica, a cineasta adiciona elementos da história da húngara Elizabeth Báthory, que no século XVI ficou conhecida como “A Condessa Sangrenta”, devido a uma série de assassinados que teria cometido em rituais macabros, realizados para lhe garantir a beleza eterna. A lenda de Báthory é incorporada à história da Condessa do longa, permitindo a Zakia a concepção de sequências de terror de grande apuro estético – o sacrifício de uma jovem sequestrada no mercado local é um dos melhores exemplos – e de muita inventividade, como a da engenhosa máquina de resfriamento. O cenário do velho casarão também é muito bem utilizado para criar esta atmosfera quase surrealista, fazendo com que o sangue quente que corre nas veias ciganas escorra em abundância na tela.

A vida cigana, aliás, é retratada de modo bastante passional pela cineasta. Seja nas músicas típicas, nos closes dos rostos marcados e extremamente expressivos das famílias reais que compõem a maior parte do elenco – principalmente as duas jovens protagonistas – ou nos diversos simbolismos sobre essa rica cultura apresentados por Zakia. As páginas do livro deixadas para trás por Reka, encerrando mais um capítulo de uma existência nômade, em que estabelecer raízes é quase impossível. A imagem recorrente dos lobos, que também vivem em grupo, protegendo uns aos outros. A utilização da mesma atriz, Fadel, para interpretar tanto a Condessa quanto Kaia na fase adulta, mostrando que ambas são lados da mesma moeda, como a que a cigana carrega durante boa parte do longa. Todas essas escolhas mostram o grande poder metafórico da direção de Zakia.

Mesmo que possa parecer confusa em determinados momentos, a fábula da cineasta preserva um encantamento inegável. Um fascínio que advém de um tipo de cinema raro no Brasil, que aborda os gêneros de maneira singular, e que guarda significados para serem explorados até seu último momento. Momento em que Zakia utiliza a busca incansável da Condessa pela imortalidade para apontar as efemeridades da vida, onde apenas sentimentos, como a amizade entre Kaia e Reka, que permanece a mesma após anos de separação, podem ser considerados imortais. E assim segue o espírito cigano, sempre em movimento, como o rio que surge no derradeiro plano do longa.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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