Crítica

Rebobine, Por Favor é um filme de uma piada só. Mas esta é tão original e curiosa que acaba sustentando toda a duração da trama. O interesse gerado pela história de dois idiotas que acidentalmente apagam o acervo de uma videolocadora e decidem refilmar por conta própria alguns dos maiores sucessos do cinema é tão grande que é quase impossível que qualquer apaixonado por cinema ignore esta produção. Porém, assim que o longa vai se desenvolvendo, percebemos que se trata de algo ainda maior e profundo, não tão cômico quanto se poderia esperar, mas muito mais sentimental e comovente. Esta é, na verdade, uma tocante história de amor pela sétima arte.

Jack Black (King Kong) e Mos Def (O Guia do Mochileiro das Galáxias) são dois jovens sem muitas perspectivas numa pequena cidade no interior dos Estados Unidos. O primeiro trabalha num ferro velho próximo a uma usina elétrica. Um acidente o deixa magnetizado, e ao ir visitar do trabalho do amigo, uma antiga e resistente videolocadora, acaba, sem se dar conta, destruindo todo o conteúdo das fitas VHS do local. Para não perder a pouca clientela, eles decidem criar suas próprias versões de filmes como Os Caça-Fantasmas, Robocop e Conduzindo Miss Daisy, gerando resultados simplesmente hilários de tão absurdos. E o acidente acaba se transformando na salvação deles, com um sucesso que irá repercutir nacionalmente. Só que tanto alarde em cima das refilmagens irá despertar a atenção até de Hollywood, que em busca dos seus direitos autorais poderá colocar tudo a perder. A não ser, é claro, que a comunidade se una e faça algo a respeito.

Dirigido por Michel Gondry – que, inclusive, esteve no Brasil no final do ano passado para o lançamento deste filme –Rebobine, Por Favor não possui o mesmo refinamento estético dos longas anteriores do cineasta, os inventivos e exóticos Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças e Sonhando Acordado. Mas contém sua dose habitual de criatividade, aliada a uma delicadeza de sentimentos que envolve e ilumina. No final das contas, a ideia de mostrar versões artesanais de filmes muito populares funciona para mostrar como a fantasia da sétima arte está ao alcance de todos, e o que importa no final é a nossa capacidade – ou falta dela – de sonhar.

Se Black e Def se saem muito bem como protagonistas – praticamente interpretando a si mesmos – entre os coadjuvantes é onde estão os verdadeiros destaques. Danny Glover, como o dono da loja, mostra ter deixado o cinema de ação mesmo no passado, e está abraçando com muita dignidade o passar dos anos (como visto também em Dreamgirls). Mia Farrow, apesar de estar um tanto afastada, continua sendo um ‘ser cinematográfico’, alternando momentos de extrema fragilidade e alienação ou outros de muito determinismo e objetividade. Assim como Sigourney Weaver, que não tem encontrado bons papéis, mas que mesmo numa pequena participação revela um vigor há muito sentido.

Divertido e carismático, Rebobine, Por Favor acaba com um gosto um pouco amargo, mas não o suficiente para prejudicar a percepção geral da obra. Utópico, saudoso e um pouco maluco, provoca identificação imediata no espectador – quem nunca imaginou, ainda que como criança, em voar como o Super-Homem ou em protagonizar grandes aventuras policiais como nos filmes do gênero? Mas também provoca reflexão, sem ser didático, e comove sem exagerar no melodramático. E, acima de tudo, confirma Gondry como um talento acima da média, um dos poucos verdadeiros “autores” do cinema mundial.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deRobledo Milani (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *