Crítica

Robert Altman foi um cineasta que poucas vezes se curvou ao esquemão hollywoodiano de produção industrial, mantendo-se até o final de sua vida como um dos últimos grandes ‘autores’ do cinema norte-americano. Mas um olhar mais acurado de sua filmografia irá encontrar obras um tanto dissonantes deste perfil. Um delas é a adaptação do personagem das histórias em quadrinhos Popeye (1980), recebida com frieza tanto pelo público quanto pela crítica. E para entender como ele acabou se envolvendo com esse projeto, é preciso voltar alguns anos. Foram os fracassos sucessivos dos autorais Cerimônia de Casamento (1978), Um Casal Perfeito (1979) e este Quinteto que o obrigaram a assumir tal missão, quase que num acerto de contas com os estúdios. Porém, de todos estes ‘tropeços’, talvez esse drama futurista estrelado por Paul Newman seja o mais compreensivo – e também o mais subestimado.

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No final do anos 1970, as plateias fervilhavam com a redescoberta da Ficção-Científica, após os incríveis sucessos de Star Wars: Episódio IV – Uma Nova Esperança (1977), Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977) e Jornada nas Estrelas: O Filme (1979). Com um cenário como esse, até quem não era muito afeito ao estilo acabou se aproximando. E entre cópias baratas e produções de fundo de garagem, volta e meia surgia algo que chamava atenção, seja pela abordagem original ou pela narrativa diferenciada. É justamente neste caso em que se encaixa Quinteto, filme que Altman realiza sem concessões. Num futuro talvez não muito distante – nunca chega a ficar preciso em que época estamos – uma nova Era do Gelo tomou conta do mundo. Nesta realidade congelada, a humanidade se agrupa nas raras cidades que ainda permanecem ativas, enquanto que os mais corajosos saem solitários em busca de comida e novas condições. Essex (Newman) é um deles.

Porém, quando a escassez se abate e a fome aumenta, é preciso retornar à casa. Acompanhado de uma jovem mulher que carrega em seu ventre uma criança, ele pode estar trazendo também uma ponta de esperança. Há muito não se vê por ali alguém tão novo, quanto mais uma grávida. Porém, neste cenário de desamparo e desilusão, uma nova atividade parece ter tomado conta de todos, dos mais altos escalões até os reles vagabundos: os campeonatos de Quinteto, um jogo de tabuleiro viciante e hipnotizador. Sua força é tamanha que os praticantes chegam a ficar dias, semanas, talvez até mesmo meses envolvidos em cada partida. Aqueles que não se aproximam são vistos como exóticos, senão temidos. Mas o perigo que estão vivenciando pode ser muito maior do que o imaginado, ainda mais quando se percebe que aquilo que deveria ser apenas uma brincadeira pode estar sendo levado a sério demais.

Sem medo de ousar, antes da primeira meia-hora da trama Altman já promove um atentado, que resulta na morte de vários personagens, inclusive de um dos supostos protagonistas. E o que faziam no momento da explosão? Jogavam quinteto! A partir daí, Essex parte para a vingança e, ainda que a tomem dele, descobre que apenas assumindo a identidade do assassino – e de posse de uma lista de nomes que esse carregava – é que poderá descobrir o que, de fato, está acontecendo. Contribui para esse clima de conspiração o fato do diretor só ter escalado atores estrangeiros para atuarem ao lado de Newman: a francesa Brigitte Fossey (Vivia), o espanhol Fernando Rey (Grigor), a dinamarquesa Nina van Pallandt (Deuca), o italiano Vittorio Gassman (Saint Christopher) e a sueca Bibi Andersson (Ambrosia). Se para o espectador brasileiro essa combinação já chama atenção, imagine a audiência norte-americana da época, em plena Guerra Fria!

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Com a identificação facilitada ao drama vivido por Paul Newman – um dos grandes astros do seu tempo, que ainda que estivesse com mais de 50 anos e cabelos grisalhos, mantinha seu charme e carisma intocável, auxiliado pelos imbatíveis olhos azuis – o desenrolar dos eventos se torna uma disputa de gato e rato, em que fica cada vez mais claro que apenas um sobreviverá ao final. Quinteto, o filme, discute elementos sociais e econômicos, numa contextualização que parece por demais fantasiosa, mas que grita por verdade a todo instante. De ritmo lento, repleto de silêncios e com uma câmera difusa nas extremidades, que facilita a impressão de sonho ou confusão, tem-se aqui uma obra para poucos e seletos públicos, mas que recompensa à altura dos esforços necessários para sua apreciação. Altman pode até fingir ter entrado no jogo dos outros, mas o que entrega mesmo é mais um trabalho pessoal e único.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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