Crítica

O retorno cinematográfico de Jerzy Skolimowski, após um hiato de 17 anos que se estendia desde o lançamento de 30 Door Key (1991), marca também um retorno às origens. Em Quatro Noites Com Anna, o cineasta volta filmar exclusivamente em polonês, algo que não ocorria desde a polêmica criada em torno do filme Mãos ao Alto!, rodado em 1967 – quando foi censurado pelo governo da Polônia – e finalizado (remontado) somente em 1981. É um ambiente familiar, portanto, que Skolimowski escolhe para retomar sua obra, filmando nas redondezas de sua casa – em um vilarejo do interior cercado pela mata –, opção que acarreta uma intimidade plena com o espaço, conferindo ao realizador um controle mais rígido sobre a história intimista de afeto obsessivo, por ele concebida.

É no humilde cenário envolto pela frieza acinzentada do clima polonês, que somos apresentados a Leon Okrasa (Artur Steranko), homem que passa as noites observando a enfermeira Anna (Kinga Preis), residente do alojamento localizado em frente à casa onde vive com sua enferma avó. Retratando seu protagonista como um tipo solitário, calado, metódico e sem traquejo social, Skolimowski joga, desde o princípio, com a percepção do espectador sobre ele, sugerindo traços de psicopatia muito mais latentes do que este, de fato, possui. Através da inserção de flashs de um interrogatório policial, do som de sirenes e das sequências iniciais que mostram Leon colocando uma mão humana em um incinerador ou comprando um novo machado, o realizador estabelece uma aura de suspense, associando a imagem de Leon à de um potencial serial killer.

Ainda que a figura aparentemente frágil e vacilante de Leon conflite com o perfil imaginado para um assassino, Skolimowski sustenta habilmente a dúvida até o momento desejado de subversão, quando revela que o ato de incinerar uma mão faz parte da rotina do personagem, funcionário do crematório do hospital, assim como a compra do machado se mostra totalmente corriqueira, inocente. A desorientação proposta pelo cineasta não se manifesta apenas nesses símbolos específicos, mas também na linearidade incerta da narrativa. O ponto de ordenação, quando os fragmentos expostos começam a se encaixar, se dá na cena em que o diretor do hospital questiona Leon sobre o sumiço da aliança pertencente ao dono da mão cremada, lembrando-o da oportunidade que lhe foi dada após sua libertação da prisão.

A partir dessa informação é possível estruturar os fatos e compreender o comportamento de Leon: os flashs do interrogatório na delegacia são decorrentes da investigação de um estupro sofrido por Anna e presenciado pelo protagonista ao voltar da pesca em meio a uma chuva torrencial. Atormentado pelo ocorrido, Leon, após alguns dias, denuncia o estupro. Porém, sem conseguir se expressar com clareza, é tomado pelos policiais como suspeito principal, e, ainda que Anna não o tenha identificado como o autor do crime, acaba sendo condenado injustamente. Assim, Skolimowski revela a origem da obsessão de Leon pela enfermeira, conexão resultante de um acontecimento brutal que, após sua soltura, faz despertar o impulso voyeurístico, elemento caro à obra do polonês, e que aqui vem carregado de um forte sentimento de culpa.

A paralisia diante do ato de violência contra Anna faz com que Leon se sinta um cúmplice observador, motivo pelo qual sua fixação transcende a paixão, o desejo físico, sendo permeada também por uma vontade de reparação. O peso desse remorso é externado com grande delicadeza pelo ator Artur Steranko, na postura retraída de Leon, em seu andar errante, suas quedas e escorregões na neve, na lama. Características que imprimem um ar quase cômico, levando o personagem a trafegar entre o patético e o trágico. Essa dualidade está presente também na visão que se confunde entre realidade e fantasia, de um homem preso nas sombras – ressaltadas pelo magistral trabalho de fotografia de Adam Sikora. Ambiguidade mantida através de imagens insólitas, como o cadáver da vaca no rio, e de breves fade outs que sugerem apagões, como se Leon se desligasse do real para adentrar seus devaneios.

Os sentimentos despertados pelo protagonista são igualmente contraditórios, pois nota-se pureza na felicidade genuína deste ao passar as quatro noites ao lado da amada adormecida – a sequência pós-festa de aniversário é especialmente tocante – e ao realizar pequenas tarefas, como lavar a louça, consertar o relógio cuco ou costurar o botão solto da camisa de Anna. Skolimowski se mantém num limite, evitando romantizar totalmente a obsessão de Leon, e não deixando de expor a natureza repreensível de suas ações – invadir o quarto, misturar calmante ao açúcar que a enfermeira coloca em seu chá – ou de puni-las. Punição que talvez seja excessiva – a prisão – mas que serve ao cineasta para que possa retornar ao tema essencial de seu cinema: a incapacidade do homem em se sobrepor à própria sorte. Pois não há ação redentora, nem símbolo de valor e beleza – a aliança de diamantes que compra para Anna – que possam alterar a sina do protagonista, como Skolimowski sublinha na cortante cena da visita no presídio. A percepção dessa impotência atinge o ápice numa alegoria direta e precisa que condensa toda a beleza do domínio imagético do realizador: o muro recém-erguido que se agiganta sobre Leon. A barreira que determina o aspecto inalcançável de seu desejo.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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