Crítica

Aclamado pelo American Film Institute como a Melhor Comédia de Todos os Tempos e dono da 14ª posição entre os melhores filmes da história, Quanto Mais Quente Melhor é o tipo de clássico que só melhora com o tempo. Ainda que tenha sido recebido com entusiasmo em seu lançamento, premiado com o Oscar de Melhor Figurino – e com outras cinco indicações, entre elas à Direção, Roteiro Adaptado e Ator (Jack Lemmon) – e vencedor de três Globos de Ouro – Melhor Filme, Atriz (Marilyn Monroe) e Ator (Lemmon), todos na divisão Comédia ou Musical – este feliz encontro entre o genial Billy Wilder e os astros Monroe, Lemmon e Tony Curtis possui tantas nuances e leituras possíveis que a cada revisão soa tão novo e original quanto da primeira vez, comprovando que não só estava à frente do seu tempo, mas também mostrando um bom exemplo de como a soma dos fatores, indiscutivelmente, pode ser maior do que os seus valores individuais.

As histórias dos bastidores de Quanto Mais Quente Melhor são tão ou mais interessantes do que aquelas que conferimos na tela. Os dois protagonistas masculinos não poderiam estar em melhor fase – Tony Curtis havia recém recebido sua primeira (e única) indicação ao Oscar, por Acorrentados (1958), enquanto que Jack Lemmon havia ganho dois anos antes sua primeira estatueta, por Mister Roberts (1955). A estrela feminina, a diva Marilyn Monroe, estava começando uma carreira também como produtora, escolhendo seus próprios projetos, e sua popularidade nunca havia sido tão alta. E Wilder, após três vitórias e impressionantes 12 indicações ao prêmio máximo da Academia, havia lançado no ano anterior o eletrizante Testemunha de Acusação (1957) – e mudanças de rumo sempre foram o forte de sua filmografia. Assim, ao lado de I.A.L. Diamond (após Amor na Tarde, 1957, dando início a uma parceria que renderia mais uma dezena de trabalhos juntos), eles pegaram a história de Roberto Thoeren e Michael Logan, já levada para os palcos, e a adaptaram para a tela com muita segurança e propriedade, transformando um texto interessante em algo inesquecível.

Joe (Curtis) e Jerry (Lemmon) são dois músicos que, inadvertidamente, acabam presenciando uma ‘queima de arquivo’ da máfia em Chicago. A partir de então os dois passam a ser caçados pelos bandidos, e a única maneira que encontram de escapar é entrando para uma banda em turnê pelo país. O problema é que não se trata de um grupo qualquer, e sim um formado apenas por garotas! Assim, os dois amigos viram Josephine e Daphne, respectivamente. E se usar salto alto e vestidos já era complicado o suficiente, imagina a situação quando a vocalista do conjunto é a irresistível Sugar Kane (Monroe), uma garota inocente e atrapalhada que tudo o que busca é se livrar dos compromissos profissionais e encontrar o amor verdadeiro. Ao ficar a par das ambições da jovem, Joe/Josephine não hesitará em tentar conquistá-la, ainda que o próprio disfarce o coloque em perigo. Jerry/Daphne, por outro lado, é o amigo bem intencionado, que ao mesmo tempo em que tenta livrá-lo de confusões, serve de apoio para ajudá-lo em cada nova artimanha.

Quanto Mais Quente Melhor é muito mais do que dois homens fantasiados de mulher e uma oportunidade para Marilyn Monroe mostrar ao mundo porque era a maior estrela de Hollywood da época. Billy Wilder, como um hábil maestro, faz uso de todas as possibilidades oferecidas por seu elenco, criando oportunidades no roteiro para que cada um brilhe de acordo com o que de melhor tinham a oferecer. Marilyn não só interpreta um símbolo sexual como também dá vazão à sua competência como cantora. Lemmon é o alívio cômico que rouba a cena, enquanto Curtis é o galã inveterado que precisa pagar os pecados por ele mesmo gerados. O trio funciona perfeitamente, e se a comédia de erros que se dá a partir do momento em que todas as pontas da trama – além deles, há ainda o milionário apaixonado (Joe E. Brown) e, é claro, os bandidos que os perseguem – se encontram beira o besteirol, isso se dá de forma calculada, estimulando o riso justamente através da feliz conjunção dos fatores que os uniram.

Inovador quanto ao trato da homossexualidade latente de alguns personagens, sábio em combinar os talentos espontâneos dos artistas aqui reunidos e repleto de frases e diálogos que entraram para a história do cinema, Quanto Mais Quente Melhor é não só uma aula de roteiro, como também de atuação e direção. Filmado em belíssimo preto e branco, o filme evita os extremos, mantendo-se nos matizes mais intermediários, mostrando que cada um dos tipos envolvidos estão aptos às mais diversas reações e atitudes. São seres complexos, reais, que felizmente fogem do estereótipo óbvio, por mais que brinquem com eles. Um casamento absurdamente envolvente, sob todos os aspectos. Um filme que combina graça com sabedoria, dividindo com a audiência o prazer evidente de partir de um gênero tão corriqueiro e reinventá-lo com gosto, dando origem a algo envolvente e arrebatador. E aos que não conseguirem absorver tudo o que aqui está à disposição, tenha certeza que uma vez nunca é bastante. Afinal, ninguém é perfeito, certo?

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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