Crítica

Observar um fato histórico passado algum tempo do ocorrido dá ao espectador a vantagem da perspectiva. Não estamos envolvidos no calor do momento e podemos encarar qualquer acontecimento de forma mais analítica – com sorte, de maneira menos parcial. Os bons livros e filmes sobre figuras importantes ganham muitos pontos quando conseguem este distanciamento, não transformando seu retratado em uma figura mítica, intocável, inabalável. Não é isso que somos e não é isso que desejamos ver. Ao assistir a uma cinebiografia, temos em mente que observaremos um ser humano com falhas e virtudes como qualquer um de nós. É neste quesito – e, infelizmente, não apenas neste – que os diretores Dieguillo Fernández e Víctor Laplace escorregam feio em Puerta de Hierro – El Exilio de Perón, praticamente transformando o personagem central em um santo na Terra.

Com roteiro de Leonel D’Agostino e de Laplace (que também interpreta o personagem central), o longa-metragem foca os 17 anos em que Juan Domingos Perón, ex-presidente da Argentina, ficou exilado após o golpe militar que lhe tirou do poder. Conhecemos sua nova paixão, a dançarina Isabel (Victoria Carreras), seus planos de retornar ao seu país de origem, o peronismo cada vez mais forte na Argentina e o seu reencontro com a falecida Evita, em uma das melhores cenas do filme. Em meio a isso, encontros fortuitos com a costureira Sofia (Natalia Mateo) criam um laço forte de amizade entre os dois, gerando assim o formato narrativo do filme – Perón gravando uma fita para sua amiga contando aqueles anos de exílio.

Salta aos olhos, logo de início, a pobre fotografia de Puerta de Hierro, com uma estética não muito diferente de um telefilme. Os enquadramentos e a carga dramática chegam perto das telenovelas – das mais antigas, visto que em dias de TV digital o capricho visual dos folhetins tem surpreendido positivamente. Esta falta de cuidado no quesito fotografia fica mais evidente quando surgem três cenas oníricas em meio ao filme, com um belíssimo uso do amarelo, provando que era possível um feeling mais cinematográfico para o longa-metragem. Em todo o caso, a direção de arte ao menos consegue trabalhar bem a época, não sendo sabotada pela falta de apuro estético.

Até não seria um problema colossal este visual televisivo caso a história fosse menos chapa branca. Juan Domingos Perón foi um dos mais importantes políticos da Argentina, portanto é natural que seja idolatrado e sua figura idealizada. Cabia, porém, aos realizadores a tarefa de humanizar esta pessoa. Trazer seus defeitos, mostrar suas virtudes, basicamente contar sua história. Não é o que acontece. Perón é retratado como um homem boníssimo, sábio, fiel, trabalhador e apaixonado pela política e pelo povo argentino. Não duvido que ele tenha sido tudo isso. Certamente foi muito mais. Este muito mais é onde Fernández e Laplace ficam devendo em nos mostrar. Alguns trechos beiram o risível pela douração da pílula. Perón conhece sua nova esposa em uma espécie de cabaré. Aparentemente, pegaria mal mostrar o ex-presidente visitando um lugar como este. Portanto, no filme, Perón é convencido – muito a contragosto – a arejar as ideias em uma festa. Lá, apaixona-se à primeira vista pela dançarina Isabel. Até neste momento a áurea mítica de Perón não se perde, visto que ele salva a mulher daquela vida.

Ao menos, a performance de Victor Laplace consegue deixar o filme mais interessante. Ainda que precise interpretar uma figura um tanto unidimensional, o ator consegue imprimir tenacidade ao papel, reprisando o personagem que já havia interpretado em Eva Perón, em 1996, a resposta argentina ao filme estrelado por Madonna. Por falar em Evita, as melhores cenas de Puerta de Hierro são as que envolvem a recuperação do corpo da falecida esposa do ex-presidente. A dor de Laplace é pungente e toda o desenrolar da devolução dos restos mortais embalsamados de Evita é tão curioso que beira o extraordinário. Nestes momentos, o longa-metragem prende completamente a atenção e ganha muitos pontos.

O filme, no entanto, requer conhecimento prévio do espectador para momentos da história argentina que muitos podem não ter. Exemplo disso é o fato do corpo de Evita ter sido embalsamado – fato que não é explicado no filme, cabendo ao público ter esta informação de antemão. Outros pontos da política daquele país podem passar batidas, bem como a importância de alguns personagens que vão surgindo e só são justificadas com as legendas informativas ao final do filme. Daniel, o mediúnico amigo de Isabel, interpretado por Fito Yanelli, é um bom exemplo disso. Ao menos, no caso dele, existe motivo para sua presença. Sofia, no entanto, serve apenas como bengala narrativa, nunca mostrando sua real importância na história. A cena em que ela descobre a verdadeira identidade de Perón causa constrangimento pelo uso exacerbado da trilha sonora, um entre tantos outros momentos em que a música e os efeitos sonoros se mostram por demais invasivos.

Feito para idolatrar Juan Domingos Perón, Puerta de Hierro perde a oportunidade de jogar luz à história dos anos de exílio do ex-presidente argentino com algum norte de objetividade. Está claro que uma figura importante como Perón merece ter sua vida contada, mas da forma como foi realizado, mais parece uma propaganda política atrasada quarenta anos do que uma cinebiografia que tenta entender quem foi aquela personalidade.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista, produz e apresenta o programa de cinema Moviola, transmitido pela Rádio Unisinos FM 103.3. É também editor do blog Paradoxo.
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