Crítica

Com 2,2 milhões de detentos em seu sistema penitenciário, os Estados Unidos veem o debate sobre a questão do encarceramento em massa se tornar cada vez mais urgente. Esse tema é tratado sob uma perspectiva singular pela canadense Brett Story em A Prisão em Doze Paisagens, seu segundo longa documental. Viajando por diferentes regiões norte-americanas, a cineasta apresenta doze episódios que buscam retratar não o universo particular do interior prisional, mas sim seu entorno, as paisagens do título, a fim de investigar o impacto da realidade carcerária sobre diversos aspectos sociais. Para sua jornada, Story se vale de uma dose salutar de lirismo, que emana tanto da trilha sonora atmosférica de Olivier Alary quanto da fotografia luminar, de aura quase onírica, de Maya Bankovic.

Esses elementos, aliados à montagem precisa de Avrïl Jacobson, ressaltam o olhar apurado de Story à associação de imagens, que eleva o potencial reflexivo da obra. Ainda que adote o formato documental tradicional em momentos específicos, captando depoimentos de alguns personagens de forma direta, a diretora demonstra grande apreço pelo viés ilustrativo, utilizando sua cuidadosa seleção visual como complemento para o material sonoro, como gravações telefônicas e transmissões de rádio com mensagens de parentes para detentos. É dessa maneira que o documentário se inicia, com cenas noturnas acompanhando o trajeto de um ônibus cujos passageiros irão visitar familiares na penitenciária de Attica. Por mais que tenha a clara pretensão de abordar variados temas, percebe-se uma ordenação consistente de ideias, com foco inicial no fator humano.

Assim, na primeira parada – o Washington Square Park, Nova York – temos como protagonista um ex-detento que aprendeu a jogar xadrez na prisão e hoje passa as tardes nas mesas do parque, ensinando e jogando com estranhos por diversão e dinheiro. Seu relato abre caminho para a questão da reintrodução social, que surge também no depoimento de uma mulher pertencente a um grupo de detentas que atuam no combate a incêndios florestais em Marin County. Explorando as imagens grandiosas das queimadas, esse é sem dúvidas um dos segmentos visualmente mais impactantes, tendo a narração em off da prisioneira que, mesmo enxergando heroísmo em seu trabalho, algo compartilhado por membros da comunidade, conclui que dificilmente conseguirá exercer tal profissão quando estiver livre.

Outro aspecto crucial examinado por Story é o econômico, pois o sistema penitenciário é também uma indústria que movimenta milhões. É o que vemos no Kentucky, onde nota-se o entusiasmo dos moradores com a possibilidade da construção de uma nova penitenciária federal, que poderá gerar empregos e alimentar a economia de um local marcado pelas paisagens desoladas das antigas minas de carvão. O tema segue sendo abordado num dos episódios mais inusitados, no Bronx, onde um homem encontra uma oportunidade de negócio, com algum fundo de auxílio social, ao criar uma espécie de loja de departamentos especializada em produtos que seguem as severas especificações impostas pelos presídios – desde alimentos e roupas até fitas cassete produzidas especialmente pela Sony – para que os familiares possam enviar aos detentos.

O tópico financeiro surge também naquele que, a princípio, aparenta ser o episódio mais deslocado: a visita a uma empresa de empréstimos guiada por um profissional de relações públicas, que discursa calorosamente sobre a revitalização imobiliária do centro industrial de Detroit, decadente após a crise do setor automobilístico. No entanto, Story não tarda a revelar suas intenções com essa passagem, conectando-a àquele que se transforma no tema mais pungente do longa: a constatação de que o encarceramento em massa está diretamente ligado à discriminação racial. Para avalizar sua reflexão, a cineasta retorna a Detroit, em 1967, recorrendo a imagens de arquivo da grande manifestação popular ocorrida em resposta aos casos de brutalidade policial contra a comunidade negra, e que ecoam em outros protestos atuais. Essas conexões levam Story a um local-chave dos conflitos raciais norte-americanos: a cidade de Ferguson, Missouri.

Entre imagens das inscrições no asfalto do local onde Michael Brown foi assassinado pelo policial branco Darren Wilson, em 2014, Story extrai os comentários mais incisivos sobre o assunto, tratando também da verdadeira máfia das multas de trânsito que assola os condados regionais, expondo a arbitrariedade da lei, as falhas do sistema e reforçando a tese do preconceito enraizado. É emblemática a sequência que percorre a fila em frente ao tribunal mostrando uma maioria avassaladora de negros entre os autuados pela polícia. É também em Ferguson que se encontram os depoimentos de maior carga emocional, como o da mulher presa após ser multada simplesmente pela colocação inadequada da tampa da lata de lixo. Há ainda a questão política/econômica ligada a esse abuso, pois a arrecadação com as multas se mostra uma das principais receitas dessas cidades. Com tantas informações em mãos, Story demonstra pleno domínio estrutural, fazendo com que a firmeza de sua construção narrativa seja evidenciada quando regressa ao aspecto humano inicial, mostrando os parentes dos detentos que aguardam a chegada do ônibus para o dia de visita. Através de seu registro poético dos últimos metros da viagem até Attica, trazendo o único vislumbre físico do local, Story faz com que, mesmo sem adentrá-la, o espectador chegue a esse ponto carregando uma nova percepção sobre os mundos existentes nos dois lados dos imponentes muros da prisão.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
avatar

Últimos artigos deLeonardo Ribeiro (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *