Crítica

Durante sete dias, entre 7 e 14 de março – ou seja, na Semana da Mulher – uma van-estúdio circulou por nove diferentes lugares, independentemente da zona social, entre centro e subúrbio, periferias e classes mais abastadas, das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. A cada nova parada, as mulheres das redondezas, transeuntes e moradoras, eram convidadas a relatar para as câmeras um caso de assédio que tivessem porventura sofrido. Algumas recusaram, é claro, outras não tinham o que dizer, mas 140 delas toparam o desafio. Destas, 26 tiveram seus relatos selecionados (todos, no entanto, em suas versões integrais, estão disponíveis no site do projeto). E são esses depoimentos que formam o longa Precisamos Falar do Assédio, documentário que deposita na força das histórias que carrega uma luta relevante enquanto movimento, mas que se revela frágil no que diz respeito ao viés cinematográfico.

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Com idades entre 18 e 84 anos, essas garotas, moças, mulheres e senhoras aceitaram o convite para entrar sozinhas naquele estúdio improvisado e, em frente a uma câmera ligada, abrir seus corações, revelar seus medos, lidar com traumas e relembrar tristes experiências. Se por um lado a diretora Paula Sacchetta não se preocupa em introduzir o espectador nesse ambiente – como eram feitos os convites, o que era dito para convencer as mulheres a se abrirem a desconhecidos, nem mesmo uma visão externa da van é oferecida – por outro isso reforça a opção em se concentrar nessas histórias, e não em todo e qualquer outro detalhe alheio a esse processo tão íntimo e pessoal. O que importa é o que elas tinham a dizer, e nada mais. Essa deveria ser a força, ao menos. No entanto, sua repetição leva a um excesso – há muitos relatos similares, por exemplo – e como acontece nesse tipo de situação, há também a dormência consequente e uma eventual anestesia, que enfraquecem justamente aquilo que deveria ser fortalecido.

O conceito de assédio vem se expandindo nos últimos anos. Tempos atrás, causou polêmica no Brasil um filme chamado Assédio Sexual (1994), em que uma mulher obrigava um dos seus funcionários a ter relações com ela. Claro que contribuíram para o fenômeno as presenças de Demi Moore e Michael Douglas como protagonistas, mas o fato é que o assunto veio à tona e se tornou debate nacional. Mas o problema é só quando se chega às vias de fato? Quando ocorre penetração e violência física? Ou apenas o constrangimento, o desconforto e o incômodo já não são suficientes? O que essas vozes femininas levam ao conhecimento do espectador é justamente a amplitude dessa situação. Desde uma cantada constrangedora na rua a uma condição de opressão no ambiente profissional, de um abuso familiar (pais, tios, primos) a um quadro de violência social, de um ataque inesperado (amigos, conhecidos) a um episódio traumático qualquer. As opções são muitas. Sacchetta não esconde isso. Porém, por mais múltiplos que sejam, em tese possuem um denominador comum: o machismo masculino contra uma suposta fragilidade feminina.

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É nesse ponto que surge o maior questionamento: com uma edição dinâmica e um olhar mais objetivo, não se teria aqui material suficiente para um contundente e estarrecedor curta-metragem? Precisamos Falar do Assédio tem importância sociocultural, sem qualquer dúvida. Cada uma das suas denúncias, tendo ou não um rosto acusador – algumas das depoentes, temendo represálias, preferiram usar máscaras para manter seu anonimato – merecem e precisam ser ouvidas. Mas seria mesmo uma sala de cinema a opção mais apropriada, ou, em um debate maior, na Justiça ou em encontros que possam evoluir para algum tipo de medida e solução para esse problema endêmico de nossa sociedade? O problema, aqui, não é o conteúdo. É, sim, e somente, a forma escolhida para tirá-lo de uma injusta obscuridade.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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