Crítica

Um garoto preso dentro de si mesmo e à beira de um abismo emocional. Este é o protagonista de Ponto Zero, longa de estreia no formato do cineasta José Pedro Goulart. Zé Pedro, como é conhecido, realizou seus primeiros curtas em parceria com Jorge Furtado ainda nos anos 1980 – O Dia em que Dorival encarou a Guarda (1986) ganhou a mostra competitiva nacional do Festival de Gramado – e teve uma experiência inicial em um projeto de maior duração ao dirigir um dos episódios de Felicidade É... (1995), projeto coletivo feito ao lado de Furtado, Cecílio Neto e José Roberto Torero. Demorou mais de trinta anos – desde Temporal (1984) – portanto, para que o cineasta se arriscasse sozinho em um desafio maior. E pelo que se vê na tela, a demora foi mais do que justificada.

Ênio (o novato Sandro Aliprandini, descoberto em uma notícia de jornal) vive o que poderia ser chamado de “claustrofobia familiar” – ele está, literalmente, no meio do fogo cruzado provocado pela crise no casamento dos pais. A mãe, de comportamento instável e dependente, passa os dias em casa sofrendo calada pelo descaso do pai, que se refugia no trabalho e nas amantes para não ter lidar com a falta do amor que não mais sente pela esposa. O menino, na verdade um pré-adolescente, é usado como joguete entre estes dois adultos: enviado por ela para vigiar o marido, ao mesmo tempo é chamado para substituí-lo à noite na cama do casal, para que a solidão de um sono desacompanhado não seja tão dura. Ao mesmo tempo, o homem que deveria ser seu exemplo lhe rechaça, pois vê nele tudo que despreza na mulher: “você deveria fazer algo na vida, não apenas obedecê-la. Afinal, é um garoto inteligente, ainda que não pareça”, grita, em meio a um acesso de fúria, o pai para o filho.

Com uma irmã ausente e amigos inexistentes, Ênio vai sendo conduzido lentamente ao ponto de ebulição. É quando, na metade do filme, chegamos, então, ao Ponto Zero. A partir desse momento tudo se transforma, e passamos a acompanhá-lo em uma jornada noturna desesperadora. O jovem, em um ato de rebeldia um tanto tolo, decide roubar a caminhonete do pai. Sai com ela pelas ruas da cidade, e a chuva que violentamente cai lhe cega como um choro que finalmente é exposto. Neste desamparo existencial, um acidente acontece. Um grito de dor. Um celular que se perde. Ele não sabe o que fazer, nem mesmo a quem recorrer. Impossibilitado de tomar qualquer atitude, sai em busca de ajuda. Os tipos com os quais se depara aumentam seu sofrimento – um atropelamento, o homem raivoso que o acusa, um motorista de ônibus revoltado, uma prostituta que decide tomar uma atitude drástica para tê-lo por perto. As mulheres o atraem, até o momento em que decide rechaçá-las. O assunto, agora, é de homens. Dele consigo mesmo.

Essa noite representa o amadurecimento do personagem. Eucir de Souza (o pai) e Patricia Selonk (a mãe) estão em performances hipnotizantes, mas é no jovem Aliprandini em que nossos olhos se fixam atentamente. Ao discutir uma situação tão particular, Goulart consegue abrir um leque de emoções repleto de sentimentos escondidos e percepções equivocadas, sobre como o mundo se move e o tamanho do peso que cada um pode – ou não – suportar. Contribuem neste processo alguns elementos de efeito arrebatador: a trilha sonora de Léo Henkin, profunda e soturna, que pontua cada momento com uma força singular; a fotografia mágica de Rodrigo Graciosa, que é hábil em criar imagens encantadoras e, ao mesmo tempo, assustadoras, revelando o universo de contradições pelo qual passa o menino; e o impressionante trabalho de som de Kiko Ferraz, que é competente o suficiente para nos colocar naquela rua, debaixo de toda essa água, e não permitir que nada passe desapercebido.

Ainda que a maior parte da sua trama seja noturna, e que uma das primeiras sequências em que encontramos o personagem principal seja num ataque violento de colegas que o desprezam, Ponto Zero é um filme que nega essa escuridão. Ou melhor, é um caminho rumo à luz. Cada um possui suas próprias dores, e não estamos aqui discutindo o que levou esse pai ou essa mãe até a situação em que se encontram, mas pertinente é tentar entender como o garoto sobreviverá a mais esta noite. E, principalmente, o quão transformado ele estará após esta passagem, em um caminho de cunho extremamente pessoal. O realismo fantástico que é imposto pela trama em determinadas sequências poderia sugerir um encontro quase onírico – ou um pesadelo atordoante – que não chega a ser bem resolvido, um resvalo no exagero. No entanto, o que de fato resta são as mãos seguras que surgem, no último instante, para nos puxarmos para cima em busca de um novo fôlego. Mesmo que estes braços sejam os nossos próprios.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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