Crítica

Há algumas sessões difíceis de serem traduzidas em palavras. A de People Power Bombshell: O Diário de Vietnam Rose certamente se encaixa nessa categoria de momentos singulares vividos numa sala escura. Nele, não existem histórias contadas. Tudo começa com um fenômeno da natureza (mal) recriado em computador. Permanentemente, a imagem emula o desgaste, muitas vezes extremo, da película. Parece que o cineasta John Torres quer falar sobre memória, para isso utilizando a matéria fílmica enquanto catalisador. Contudo, nada reforça essa suposta intenção. O fiapo de trama dá conta do registro dos bastidores de um filme a ser rodado no Vietnam, com atores filipinos passando-se por vietnamitas. Chega-se a mencionar Platoon (1986), grande sucesso de Oliver Stone sobre os horrores da guerra. É preciso trabalhar antes que os helicópteros de Hollywood inviabilizem tudo. Porém, tal menção também não importa.

Na verdade, People Power Bombshell: O Diário de Vietnam Rose é um constante fluxo de imagens aleatórias entrecortadas por instantes em que há a sugestão de certo propósito. Os atores se deslocam pelo rio. Alguns morrem. Corpos são descartados. Mulheres nuas boiam. Nada faz sentido nessa realização experimental ao limite do suportável, que se regozija provendo desconexões frequentes. Sempre que algo ameaça traçar uma linearidade, ainda que mínima, surge um corte providencial que nos devolve praticamente ao limbo. É preciso tenacidade para aguentar os quase 90 minutos desse evento audiovisual abstrato, tão insólito quanto incompreensível. Recorrendo às informações de produção, sabemos que John Torres utiliza fragmentos do filme inacabado de um realizador famoso nas Filipinas. Nada, porém, que transcenda a pura curiosidade, pois a reciclagem nem chega a reivindicar atenção.

People Power Bombshell: O Diário de Vietnam Rose obviamente não almeja se fruído como boa parte do cinema em cartaz nos multiplexes, fato consumado pela negação total da oferta de elementos em que o espectador possa se agarrar minimamente. Existem passagens absolutamente risíveis no longa-metragem, como as cenas dubladas, semelhantes às sátiras que visam transformar em farsa o conteúdo original de determinadas obras. Pelo menos, a risada alivia a opressão predominante em virtude da proposta radical. Todavia, como todos os demais itinerários delineados rumo ao caos, não dura tempo suficiente para, sequer, permitir uma guinada cômica. Sobra espaço em meio a toda essa confusão para uma disputa ininteligível entre o diretor do filme dentro do filme, um tipo aparentemente saído dos exemplares norte-americanos e oitentistas de sobrevivência na selva, e o ator messiânico.

A metalinguagem é outro componente pretensamente substancial, mas tão anódino quanto qualquer outro nessa bagunça cinematográfica sem pé nem cabeça. Perscrutar a narrativa em busca de protagonistas é um exercício fadado ao fracasso. A jovem Liz Alindogan é praticamente uma entidade habitando o espaço entre as dimensões fragilmente interconectadas. Aliás, abundam corpos femininos nus, prioritariamente em contato direto com a natureza, principalmente o rio. Não que de tal recorrência se desprendam significados. A menção à Platoon tampouco gera reverberações, senão como referência a um diretor estadunidense que, diferentemente de John Torres, filma o oriente com olhar estrangeiro. Cansando o espectador com a flagrante gratuidade da alusão à ação do tempo sobre a película, pois inexiste uma reflexão que a dignifique, o cineasta não se comunica, se trumbica.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *