Crítica

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Dois policiais. Um veterano, já cansado de tantas batalhas, dono de seus próprios pecados, preocupado apenas em fazer seu serviço e voltar para casa, para as mulheres, para a bebida. O outro determinado, disposto a fazer o que for preciso e a sacrificar o que estiver pela frente em busca de uma justiça que talvez nem mais exista. Ambos unidos em um mesmo caso, no meio do nada, distante de uma lei e de uma sociedade que em conjunto até funcionavam, mas que ali não passam mais do que meras lembranças. No caminho de ambos, um serial killer experiente, sádico e envolvente, que deixa suas vítimas nas piores condições e tem plena convicção de que nunca será pego. Estão, assim, expostos os principais elementos do thriller Pecados Antigos, Longas Sombras, uma das melhores e mais impactantes surpresas desta temporada.

Estamos em 1980. A Espanha está recém se libertando do Governo Franquista, e a população precisa a aprender a lidar com a democracia recém retomada. Muitos, ainda sem saber ao certo como lidar com essa liberdade, confusos com os limites que precisam se impostos, acabam se excedendo. Seja na busca por uma condição melhor, ou mesmo na ausência do medo que possam precavê-los diante de situações de perigo. É por isso que o trabalho de Juan (Javier Gutiérrez, de Truman, 2015) e Pedro (Raúl Arévalo, de Os Amantes Passageiros, 2013) é tão importante. Mas o primeiro está há anos na ativa, se envolveu com mais de um tipo de ideologia e faz questão de deixar seus esqueletos bem esquecidos dentro de um armário qualquer. O segundo, por sua vez, é o idealista, que não tolera ‘jeitinhos’ e quer fazer a coisa certa, independente do momento ou da situação. A combinação parece explosiva, mas quando são enviados para investigar o desaparecimento de duas garotas no sul do país, numa região de lagos e banhados, terão que acertar suas arestas para, enfim, darem cabo da missão pela qual são responsáveis.

Da premissa à ambientação, muito em Pecados Antigos, Longas Sombras irá remeter o espectador mais atento à primeira temporada da bem-sucedida série de televisão True Detective (2014). E assim como na história protagonizado por Woody Harrelson e Matthew McConaughey, que à medida em que avançavam em suas investigações iam se deparando – e se horrorizando – com absurdos cada vez maiores, Juan e Pedro também terão desafios intensos os esperando. É curioso, no entanto, o cenário que encontrarão: uma realidade que não os quer e que fará de tudo para que saiam dali o quanto antes, e, de preferencia, de mãos abanando. As meninas que sumiram “gostavam de se divertir”, segundo a polícia local, e ninguém se importa com elas. “Vocês só estão aqui porque a mãe delas é prima de um juiz, não há uma única alma por aqui preocupada com o que aconteceu com elas”, afirma o pai em desespero. E elas não serão as únicas em condições similares. E nem as últimas a receberem o mesmo destino.

Dos bêbados no parque de diversão ao fotojornalista em busca de novidades sangrentas, todos ali possuem seus segredos, e estão loucos para revelá-los do modo mais espetacular possível. É um microcosmo que reflete com precisão a imagem de um país que parece não saber mais como andar com as próprias pernas. Essa contradição, entre a vontade de dar o próximo passo e o anseio por se livrar de uma bagagem por demais pesada, ganha um retrato fiel nos dois protagonistas, encarnados com uma força singular por Gutiérrez e Arévalo. Os dois compõem lados distintos de uma mesma moeda, e será em suas diferenças que irão se completar, mostrando-se indissociáveis para a resolução do mistério que tanto os amedronta quanto atrai. A verdade raras vezes é bonita, e aqui terá tons de um vermelho já esmaecido.

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Grande vencedor do prêmio Goya – o Oscar do cinema espanhol – Pecados Antigos, Longas Sombras venceu dez das dezesseis categorias a que concorria, se consagrando como Melhor Filme do ano também no Círculo de Críticos da Espanha e na escolha da audiência dos Prêmios Platino do Cinema Iberoamericano. Tenso do começo ao fim, é uma prova de nervos e também um interessante estudo sobre a psique humana, tendo como princípio o fato de certas convicções poderem ser desconstruídas internamente a partir da contaminação por uma realidade mais urgente. Da mesma forma, o enigma a ser revelado pode ser mera desculpa para uma análise a respeito da tolerância e de como ela pode funcionar, mais do que qualquer coisa, como uma arma de sobrevivência. O anseio por uma vida melhor pode calar fundo no âmago de muitos, mas a conscientização de que pode haver um preço a ser pago ainda é uma noção que provoca reações diversas. Ao contrário deste bem acabado filme, que seguirá repercutindo junto a sua audiência ainda muito após o seu término.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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