Crítica

Um dos fatos mais admiráveis que o cinema mundial presenciou recentemente foi a reinvenção da atriz Kristin Scott Thomas enquanto intérprete. Após ter sido indicada ao Oscar nos anos 90, e de ter feito algumas escolhas equivocadas, acabou sendo esquecida pelo cinema americano. Foi na França, no entanto, onde conseguiu ser redescoberta, com trabalhos como Partir, excelente veículo para um talento até então insuspeito. Se em O Paciente Inglês (1996) ela aparecia quase como um ideal romântico, indo mais na onda do filme do que por mérito próprio, o cinema francês foi responsável por lhe abrir um espaço precioso, como no intenso Há Tanto Tempo que te Amo (2008).

Partir tem roteiro e direção da veterana Catherine Corsini, e conta uma história bem feminina: a da mulher que larga tudo em nome de um novo a avassalador amor. Ou seria uma mera paixão passageira? Afinal Suzanne (Thomas), a protagonista em questão, era uma mulher com aparentemente tudo para ser feliz. Mas, como o próprio texto afirma, essa vida só era perfeita na superfície. Na solidão da cama dividida, após o apagar das luzes, só lhe restava o amargo da mesmice, da monotonia e da desilusão. Nem um marido responsável, uma bela casa e dois filhos sadios e educados pareciam ser suficientes para lhe garantir a felicidade. Ela precisava demais, e só tomou consciência disso quando, por acidente, precisou conviver com um homem que era diferente de tudo a que ela já havia se acostumado. E o mais surpreendente foi perceber o quanto necessitava daquela nova realidade.

Após perder tempo com papéis coadjuvantes sem o menor brilho em filmes descartáveis como A Outra (2008) e Os Delírios de Consumo de Becky Bloom (2009), Scott Thomas encontra em Partir uma feliz oportunidade para fazer uso de todo um potencial interpretativo até então desconhecido da grande maioria dos cinéfilos. Ela se entrega com tal força a este novo sentimento que a domina, oferecendo nenhuma resistência, que somente tendo total compreensão do seu personagem para transmitir tamanha segurança ao espectador. E este, mesmo discordando das atitudes dela, conseguirá compreender suas ações. E, assim, entendê-la sem julgá-la. Poucos atores conseguem dizer tanto com tão pouco a oferecer – como apenas um olhar, por exemplo. Um bom exemplo é o momento em que ela é mandada embora, ainda na cama, pelo amante. A câmera não se mexe. Tudo o que temos é seu olhar. E há um mundo de contradições e anseios que apenas é apenas vislumbrado, mas de modo tão intenso que é tudo o que precisamos.

Outro ponto forte de Partir são os outros dois vértices deste triângulo amoroso. Yvan Attal (Munique, 2005) é o marido que luta para restituir sua família. Ele sabe seu papel, entende que a batalha pode estar perdida, mas nunca a guerra, pois possui armas que só ele tem. E não teme colocá-las em uso. Sergi Lopez (Coisas Belas e Sujas, 2002), um dos melhores atores do atual cinema espanhol, é aquele que nada tem a perder – mas que logo descobre que tem pouco a ganhar, também. Ou estará enganado? Afinal, este não é um filme de respostas fáceis nem de conclusões definitivas. Somos levados por um caminho, apenas para em seguida perceber que a condução tem outro destino. Partimos, sim, mesmo sem saber para onde vamos. E a conclusão é de que mais importante do que saber o que queremos é termos certeza daquilo que não mais buscamos.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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