Crítica

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Filmes experimentais e art-house costumam exigir certa dose de paciência do público. São obras que tomam caminhos além dos convencionais, criando uma experiência na qual a audiência é mais ativa, pois precisa interpretar com boa dose de profundidade o que lhe está sendo apresentado. O último longa-metragem do falecido cineasta Ricardo Miranda, Paixão e Virtude, é um desses filmes. Num trabalho que pretende desafiar o que o espectador entende por cinema, adaptações literárias e até narrativa num sentido mais amplo, o resultado é bastante original, porém incômodo, inquietante e muito difícil de assistir.

Caracterizado por seus realizadores como um "livre escrever de imagens", o filme se baseia no conto homônimo e pouco conhecido de Gustave Flaubert. Não seria correto, entretanto, dizer que o longa é uma adaptação. Ao invés de passar pelo processo de traduzir o original literário a uma linguagem audiovisual, há uma tentativa de jogar o texto quase diretamente na tela. No cerne do enredo está a relação da adúltera Mazza (Rose Abdallah) com o jovem Ernesto (Paulo Azevedo), únicos personagens "fixos" em seus intérpretes. É interessante notar, aliás, que os créditos mostram apenas os nomes dos membros do elenco, sem especificar o papel de cada ator, já que a maioria transita livremente entre as posições de personagem e narrador.

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Num filme em que absolutamente tudo parece pensado para causar estranhamento, talvez o maior incômodo venha da ausência de um conjunto de regras estabelecidas. Se a audiência compreende a lógica interna de uma obra de ficção, é capaz de aceitar qualquer coisa que seja condizente com ela, por mais que aquilo não faça sentido no mundo real. As regras de Paixão e Virtude, entretanto, oscilam e se contradizem o tempo todo. O texto de Flaubert, grande foco da obra, é sempre recitado pelos atores: alguns falam como o narrador em meio aos seus próprios diálogos, outros se encarregam da descrição da cena - ora seguida à risca, ora completamente ignorada - enquanto a observam sem participar diretamente. Há os que, ainda, ficam totalmente separados dos personagens, caminhando sozinhos e reproduzindo as palavras do escritor francês. O modo como as figuras da trama reagem a essa maneira incomum de contar uma história também varia. Em alguns momentos é como se ouvissem a narração, em outros o tempo parece congelar entre linhas de diálogo e há, também, esporádicas quebras da quarta parede, nas quais as palavras são dirigidas diretamente ao público.

Além da aparente alternância de atores num mesmo papel - não fica claro se Paulo Azevedo e Bárbara Vida se revezam na pele de Ernesto ou se ela apenas toma a voz dele, como faz um leitor diante de uma obra literária -, a ambiguidade que tange o tempo e o espaço da narrativa também pode deixar o filme confuso. O romance clandestino de Mazza e Ernesto acontece na França do século XIX, mas a direção de arte e o figurino parecem indicar uma leitura atual do conto, algo similar à adaptação de Joss Whedon de Muito Barulho Por Nada (2012), que coloca a peça de Shakespeare nos dias de hoje sem alterar o texto original. No entanto, é difícil determinar se essa foi a ideia dos realizadores de Paixão e Virtude, já que ocasionalmente o filme sente a necessidade de inserir elementos específicos da época em que passa a história. Fica a critério do espectador decidir se a simplicidade da ambientação é sinal de incoerência ou apenas minimalismo.

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No entanto, a inconsistência não é necessariamente um problema, não fere a obra. A ideia de todo o projeto é dar atenção e liberdade à palavra, algo que aqui se torna mais importante que as imagens, os personagens e a trama. Tudo isso dá ao filme um caráter onírico, quase lynchiano. Como num sonho, o enredo se desenvolve de maneira caótica. Pessoas se transformam, a postura e a linguagem corporal dos atores foge completamente da normalidade, há longos silêncios, imagens desconexas e desconcertantes, numerosas cenas de corpos se esfregando lascivamente e simulações de relações sexuais. O grande mérito de Miranda está na proposta de desafiar a própria forma e, uma vez que o espectador se acostuma com o ritmo errante da narrativa - se é que se pode usar esse termo -, assistir ao longa vira uma experiência bastante rica. O problema, entretanto, é conseguir se acostumar. Para o público, a barreira do estranhamento pode ser quase intransponível. Surpreendentemente lento para o pouco tempo de duração e cheio de imagens incômodas, às vezes até repulsivas, Paixão e Virtude é um filme único, mas que passa longe de ser agradável.

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cursa Jornalismo na Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo e é editora do blog Cine Brasil.
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