Crítica

Último filme de John Huston, Os Vivos e os Mortos tem origem no conto Os Mortos, publicado por James Joyce em 1914 na coletânea Os Dublinenses, ou seja, é uma adaptação cinematográfica de um dos maiores literatos do século passado. Por serem suportes diferentes, a literatura e o cinema nem sempre dialogam bem, ainda mais quando o filme deriva de uma dessas obras inquestionáveis, ou de um autor cuja importância tampouco se coloca em xeque. Huston já havia se aventurado em terreno semelhantemente pantanoso ao realizar Moby Dick (1956), com base no livro de Herman Melville. Quis o destino, ou qualquer coisa que o valha, que ele deixasse uma reinterpretação de Joyce como testamento. O filme se passa no Dia dos Reis, em Dublin, na Irlanda então sob a neve. Estamos no início do século XX, época do vicejar dos novos tempos, do florescimento do progresso.

Aos poucos, os convidados vão chegando à casa de três mulheres para uma tradicional comemoração. Huston aproveita esses momentos para desenhar em linhas gerais os personagens que acompanharemos durante quase toda narrativa. É uma habilidade rara essa de condensar o necessário em poucas palavras, em gestos de expressiva sutileza. Aliás, se precisássemos definir Os Vivos e os Mortos com brevidade, certamente sintético e sútil seriam como que palavras-chave. Voltando à trama, antes do jantar que é anunciado a todo momento, as relações entre aqueles que estão em comunhão se descortinam, mas sem alarde, devagar, ao sabor do tempo que parece arrastar-se para perpetuar momentos de júbilo que tendem a afastar os infortúnios cotidianos. Porém, numa festa como essa, tristeza e lembranças vêm indesejavelmente como bagagem.

Já vimos no cinema diversos filmes que utilizam festejos como catalisadores de embaraços, de infelicidades, de memórias ruidosas que retumbam ensurdecendo o presente. Em Os Vivos e os Mortos isso também acontece de alguma maneira, mas não como se essa melancolia de existir fosse alheia à normalidade, um evento descolado dela, e sim como parte intrínseca de estar vivo. Ainda que o casal Gabriel e Greta Conroy (Donal McCann e Anjelica Huston) sejam algo como protagonistas, na verdade quem centraliza a trama é o sentimento de nostalgia de um tempo que não existe mais, de pessoas e acontecimentos que se foram não sem deixar rastros. As músicas que já não são as mesmas, as condutas que já não são as mesmas, os amores que já não são os mesmos, a própria Irlanda e os irlandeses que já não são os mesmos, tudo alimenta essa insatisfação latente com o tempo vivido.

Findo o jantar, e um fragmento de canção traz de volta a Greta um episódio doloroso do passado. A cena em que a mulher fica no alto da escada, absorta em lembranças emolduradas pela voz do cantor, enquanto o marido a contempla, é uma epifania só mesmo possível graças à sensibilidade de um autor de verdade como Huston. Logo após, já na intimidade do quarto do hotel, ela fala sobre a paixão da juventude que motivou sua nostalgia. Despreocupada com o eventual ciúme do marido, talvez porque amplamente tomada pela saudade, talvez por conta do amor entre ambos prescindir de meias palavras, ela chora seu pesar. Já ele, arrastado pelo vislumbre de fragilidade, se põe a refletir consigo mesmo sobre vida e morte. Assim acaba o último filme de John Huston, belo testamento de uma carreira tão rica e importante.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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