Crítica

Roy Waller é um vigarista, e ele sabe disso. Só que não admite ser considerado um dos “vilões”, uma vez que nunca fez mal a ninguém, nem precisou usar uma arma de fogo, e tudo o que conseguiu lhe foi entregue (após ludibriar bem suas vítimas), nunca arrancado. Ele tem como pupilo o impulsivo Frank, um cara que está aprendendo as táticas da malandragem, e o que deseja é terminar como Roy, exceto por um ponto: este é um verdadeiro neurótico compulsivo, cheio de tiques e compulsões que podem surgir a qualquer momento, como diante de uma porta semiaberta ou de um carpete amarrotado. A vida dos dois ia muito bem, com pequenos golpes que lhes rendiam bons lucros, até uma surpresa do passado aparecer para atrapalhar os planos: Roy descobre que possui uma filha adolescente, fruto de um relacionamento mal resolvido. Assim começa Os Vigaristas, um dos filmes mais despretenciosos – e subestimados – de toda a filmografia de Ridley Scott.

A entrada da garota em cena procova uma ruptura entre os dois amigos. Ao mesmo tempo em que Roy passa a se questionar sobre seu estilo de vida, Frank começa a cobrá-lo ainda mais, colocando em cheque a parceria deles e o próprio futuro profissional de cada um. Os Vigaristas parece ser apenas mais uma comédia divertida e corriqueira de trambiqueiros envolvidos num último e lucrativo golpe, enquanto procuram contornar os empecilhos que vão surgindo no caminho de ambos. O que a distancia desse cenário medíocre e nada atraente são os nomes de Nicolas Cage (Roy), Alison Lohman (a filha), e Sam Rockwell (Frank) à frente do elenco, além, é claro, da mão segura de Scott na direção. São esses quatro que colocam o filme num nível superior ao imaginado, proporcionando uma boa experiência àqueles que decidirem conferir essa história dona de mais altos que baixos.

Ridley Scott acerta ao escolher um viés mais humano para contar a trajetória de seus personagens. Roy é um solitário que deseja encontrar seu porto seguro, até para se livrar de suas manias e neuroses. Frank, por sua vez, encarna com perfeição o papel do novato que quer crescer na vida à todo custo, não se importando com o preço a ser pago, sempre se guiando nos passos de seu mestre. E a garota é um achado, conferindo a leveza e descontração necessárias para a trama. Um alívio muito bem aproveitado e encarnado por essa atriz competente, que desempenha com confiança o que lhe é exigido. Os Vigaristas, portanto, se revela muito mais um estudo sobre estes três tipos do que uma trama com início, meio e fim, que prenda a atenção do espectador pelo desenrolar de uma eventual história. O enredo é importante, mas aqueles que o defendem são ainda mais merecedores de atenção.

Com um final surpreendente, que apresenta boas e inesperadas reviravoltas, ainda que construídas a partir de clichês do gênero, Os Vigaristas se revela, após o seu término, uma obra acima da média e fora do comum, merecedora de elogios consistentes. Scott e seus atores devem ter se divertido durante as filmagens, e tal leveza é perceptível a quem assiste. Ainda mais pelas opções exploradas em cena, que resultam em uma boa lição de vida. Um caso apropriado em que o conjunto é mais interessante do que suas partes individuais, mostrando como o todo pode adquirir um significado pertinente quando apresentado dentro de um contexto que faça jus aos talentos envolvidos.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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