Crítica

O letreiro inicial de O Pecado de Todos Nós menciona um assassinato. A informação não está ali apenas para, ligada à consumação final, fechar um ciclo, mas para assombrar as relações já conflituosas da narrativa com a presença certa da morte. O desejo, engrenagem motriz do filme, é explorado em suas potencialidades mais destrutivas, e o espreitar constante da tragédia contribui para isso, assim como o próprio cenário, uma base militar americana de ambiente repressor. Nela vivem o Major Weldon Penderton (Marlon Brando) e sua esposa Leonora (Elizabeth Taylor), cujo casamento é conturbado pelo desejo insatisfeito de ambos.

O caso extraconjugal de Leonora com o Coronel Morris Langdon (Brian Keith) é apenas um indício, embora, em princípio, seja habilmente conduzido por John Huston como central. Os olhares maliciosos dos soldados que intuem a finalidade de passeios pelo bosque e a própria irritabilidade do Major (que parece saber-se traído), nos dão a ideia de que ali está o centro da trama. Contudo, aos poucos e com sutileza, o cineasta vai engendrando elementos que tornam o painel muito mais complexo, partindo das figuras às situações, não o contrário. Assim, a traição é quase desimportante frente ao que a motiva, por exemplo. Na medida em que avança, O Pecado de Todos Nós mostra camadas subjacentes à aparência, àquilo que os olhos primeiro veem.

Nessa ciranda emocional, o soldado Williams (Robert Forster) é figura-chave, pois o vértice do casal, onde o desejo de ambos se encontra. A homossexualidade reprimida do Major – algo que traz consigo uma série de desdobramentos não só a ele, mas também a outros - vem à tona no desejo por Williams, este que, em contrapartida, deseja Leonora, a quem espia furtivamente durante o sono. Também é importante notar a relação entre a sexualidade e os cavalos, já que os animais surgem no mais das vezes como metáforas da virilidade. Não à toa, Williams cavalga nu pela floresta, numa visão primeiro objetiva, mas que assume adiante um caráter simbólico, sobretudo por aludir diretamente aos anseios contidos do Major.

John Huston constrói, desconstrói e reconstrói seus protagonistas distintamente. Enquanto a histérica Leonora expõe seus sentimentos e frustrações, e por isso conseguimos lê-la com certa facilidade, o Major é ensimesmado, alguém a quem precisamos prestar mais atenção. Os coadjuvantes são imprescindíveis dentro dessa complexidade que os abraça, sobretudo o casal não menos infeliz formado pelo Coronel Morris e a depressiva Alison langdon (Julie Harris), ela que nunca se recuperou da morte da filha recém-nascida. Em O Pecado de Todos Nós a teia social está em constante choque com a natureza, digamos, primitiva dos personagens.

Muito se fala a respeito da fotografia bela e incomum que Huston criou junto com os fotógrafos Aldo Tonti e Oswald Morris (não creditado). Para além de evitar a saturação do technicolor de então e, com isso, promover certo distanciamento positivo, ela possui um amplo sentido poético. Lá para o meio do filme, Anacleto (Zorro David), o acompanhante filipino de Alison, fala sobre os reflexos do grotesco no olho dourado de um pavão. A passagem condensa com precisão o processo da construção de O Pecado de Todos Nós, um filme cuja beleza visual amplifica, por contraste, os dramas humanos e o diálogo nefasto entre desejo e morte.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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