Crítica

O flerte é a obsessão dos jovens parisienses em Os Libertinos. No começo do filme, três amigos caminham pela cidade em busca de mulheres com quem passar a noite. Pequenos truques, atrevimentos nem sempre bem recebidos, tudo é válido nesse jogo de cercar o sexo alheio rumo ao prazer. Freddy (Jacques Charrier), recém-saído de uma decepção amorosa, quer mais, sua carência parece diferente, embora num primeiro momento seja tão banal como a dos outros. Ele quer achar a mulher ideal, refutando a investida nas chamadas “fáceis”. Nessa realidade, em que o prazer efêmero é a meta tanto dos rapazes quanto das moças que vagam de bar em bar, de olhar em olhar, sua necessidade aparenta mais profundidade, mesmo que ele se atenha a toda oportunidade de seduzir os desejosos corpos femininos à disposição. Freddy encontra um parceiro de caçada, o tímido Joseph (Charles Aznavour). Mesmo desconhecidos, formam uma dupla que percorre as ruas procurando satisfação.

O cineasta Jean-Pierre Mocky usa o ridículo das cantadas e das aproximações como sintoma primário da degradação sentimental que abate todos, característica que redefine os relacionamentos.  O romance perde terreno para o hedonismo, o prazer acima de tudo, senão profundamente, mas nos atos e gestos superficiais dos que chegam a refutar qualquer contato mais afetuoso. Freddy, mesmo aparentando ser outro conquistador barato, se mostra, à sua maneira, um observador da complexidade feminina, dos tormentos e particularidades de cada mulher que ele encontra pelo caminho. Suas abordagens podem até ser cafajestes, mas o contato subsequente o expõe como um romântico que perscruta tortuosamente o corpo alheio em busca de amor. O fiel escudeiro vê nele, além de amigo, alguém que pode lhe ajudar a encontrar uma companheira para aplacar a solidão. Um quer amar e ser amado, o outro investe, sem muita habilidade, por puro medo de acabar sozinho.

Os coadjuvantes de Os Libertinos são o pilar principal do painel que Mocky procura traçar, sobretudo as mulheres com quem Freddy quase chega a se relacionar. A prostituta, as turistas suecas que só pensam em diversão, a adolescente que lhe rouba um beijo e pede para aprender sobre o amor, a jovem rejeitada pelo amante que vê o estranho como emplastro, entre outras. Nesse sentido, a passagem mais significativa se dá no encontro do protagonista com a personagem de Anouk Aimée, uma mulher de expressão triste, acompanhada do filho e abrigada da chuva embaixo de uma marquise. Em meio às instâncias próprias da sedução, se estabelece entre eles uma ligação mais próxima da esperança fugaz que propriamente de algo relativo ao amor ou mesmo ao sexo. Quando ela se levanta e vai embora, deixando transparecer uma peculiaridade, ele hesita, mas logo corre atrás, querendo aliviar-lhe a dor. Contudo, a hesitação cobra um preço, neste caso a impossibilidade de arrepender-se.

Paris é registrada como uma cidade propícia aos encontros, mesmo que eles sejam descartáveis. O brasileiro Noite Vazia (1964), de Walter Hugo Khouri, se assemelha muito a este filme. Ambos são fundamentados em buscas fadadas ao fracasso, empreendidas por homens e mulheres que vagam à noite como zumbis sentimentais, eternamente inquietos por conta de uma fome insaciável. Jean-Pierre Mocky começa pelo lado meio patético dos jogos de sedução masculinos, para depois deflagrar uma complexidade insuspeita até então. Tanto Freddy quanto Joseph são testemunhas oculares e partícipes desse movimento incessante e muitas vezes forçado de interação, que leva do nada ao lugar nenhum. Os Libertinos é um filme de forte apelo sensual, no qual a satisfação pura e simples do desejo é mostrada como algo ao alcance das mãos, mas nem sempre suficiente para suprir outras demandas de natureza existencial e amorosa.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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