Crítica

Abandonado pela esposa uruguaia em Berlim, um ator alemão (Félix Marchand) vai até Montevidéu para acertar contas. Seus problemas começam no aeroporto, onde a mala desaparece. Falando pouco espanhol, ele se vê acuado num lugar incógnito, sem o mínimo direcionamento. O desespero o faz roubar a carteira do homem que momentos antes havia protagonizado um episódio de raiva ao orelhão por conta do fim de seu casamento. Em Os Inimigos da Dor predomina um clima de estranhamento, algo sublinhado pela insólita e bela trilha sonora a cargo de Maximiliano Silveira e de Manuel Rilla, que lembra, em certa medida, a composta por Vangelis para Blade Runner: O Caçador de Androides (1982). O inteligente roteiro encadeia as situações e os personagens com base nas soluções visuais e nas sonoras, reduzindo, assim, o texto ao mínimo. O resultado é uma atmosfera singular de fábula.

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Dentro dessa construção que privilegia a imagem em detrimento da palavra, o modo como o diretor de fotografia Thomas Mauch registra Montevidéu se mostra essencial. A cidade é captada como um lugar praticamente abandonado, repleto de prédios caindo aos pedaços e espaços que denotam externamente a paisagem interna das pessoas em cena. Portanto, a “distopia” impressa nos cenários é um reflexo dos afetos despedaçados, das desilusões que marcam os que atravessam o caminho do ator alemão, bem como as dele. Errando pelas ruas, depois de arrumar encrenca com a polícia, ser perdoado por quem se identifica pronta e profundamente com sua dor, ele vai se conectando com sujeitos que também sofrem, que da mesma forma tateiam no escuro para alcançar instantes de felicidade em meio à tristeza vigente. É acolhido por um mendigo no hospital desativado da localidade e se envolve mais adiante com um garoto marginalizado, aparentemente tão assustado quanto qualquer um.

A barreira da língua, que, em princípio, confere aos problemas um peso maior, perde importância frente à comunicação que o alemão estabelece com os amigos recentes. Mesmo falando em seu idioma, então não se fazendo compreender verbalmente no mais das vezes, ele cria empatia pelos demais, sendo a recíproca bastante verdadeira. A iminência do encontro com a mulher ainda amada o aterroriza, afinal de contas é ali que ele se defrontará com as mágoas, fantasmas de um relacionamento que não deu certo. O filme do cineasta Arauco Hernández, uma coprodução Brasil/Uruguai, nos conquista não apenas pelo carisma dos personagens, mas, sobretudo, em virtude da engenhosidade da linguagem, dos sentimentos que se deixam perceber por meio de gestos concomitantemente sutis e claros, da utilização expressiva dos espaços como elemento dramático e da aproximação orgânica das subjetividades.

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O sofrimento é o polo principal de atração, o ponto pelo qual, basicamente, todos se conectam a fim de transpor as adversidades. Em Os Inimigos da Dor o enfrentamento ganha ares de conto de fadas fraturado, sem garantias de finais felizes. O périplo do estrangeiro por um país, na prática, desconhecido, mas que lhe é próximo emocionalmente, porque foi ali que nasceu e onde atualmente mora a ex-esposa, se caracteriza pela solidariedade entre pares improváveis. Decepção amorosa, solidão e orfandade são exemplos das mazelas que juntam caráteres tão diferentes, responsáveis por estabelecer sólidas ligações, tanto que uns passam a correr riscos pelos outros, ou seja, da miserabilidade em comum nasce algo bom. Nem mesmo a rarefação dos diálogos breca o entendimento, instância alcançada, senão plenamente, de maneira mais espontânea e menos cerebral, nesta ótima realização de Arauco Hernández.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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