Crítica

O cinema nacional está cada vez mais antenado com a diversidade, no mais amplo sentido desta expressão. Foi-se o tempo em que só se faziam cinebiografias ou comédias pastelões. E o gênero que melhor tem explorando essas variáveis é o documentário. Talvez pelo fato do investimento financeiro em sua realização ser menor, a liberdade de construção é inversamente proporcional, o que possibilidade abordar temas que não encontram espaço em projetos que focam públicos mais abrangentes. Um bom exemplo disso é o novo trabalho do diretor Kiko Goifman, Olhe pra mim de novo, realizado em parceria com sua esposa, Claudia Priscilla.

Documentário construído num formato bastante clássico, Olhe pra mim de novo reflete bem a dualidade de um projeto capitaneado por duas pessoas com ambições similares, porém com históricos diversos. Claudia Priscilla e Kiko Goifman são cineastas premiados e respeitados, mas isso não significa que, a despeito da intimidade que partilham, profissionalmente tenham muito em comum. Os dois possuem currículos de respeito. Ela já foi premiada em Berlim (com o curta Sexo e Claustro) e em Paulínia (com o longa Leite e Ferro). Ele realizou obras do gênero como 33 (exibido em Locarno e Roterdã) e FilmeFobia (grande vencedor de Brasília em 2008). E em conjunto partem de um personagem interessantíssimo, o transexual Sillvyo Luccio, para pesquisar e colocar em evidência diversas situações de preconceito e discriminação no nordeste brasileiro.

Olhe pra mim de novo é um road movie pelo sertão tendo como foco a diversidade humana – indo além da questão sexual. No início, entretanto, se dá espaço em demasia para a história de Luccio, relatando como uma mulher decide abandonar família e amigos para se assumir como homem, pois é somente assim que ela se identifica. Sua difícil relação com a mãe e com a filha – que deixou para os avós criarem – sua nova família com uma esposa, o comportamento no dia a dia, os tratamentos hormonais, o sexo, o tesão, o romance. Tudo é explorado com bastante propriedade, franqueza e esclarecimento. E essa parte é tão bem feita e envolvente que a quebra para partir para o objetivo original soa brusca e desnecessária. E esse é o maior problema do filme: uma mudança que não chega a se justificar, resultando no desperdício de uma oportunidade única e preciosa.

Já se passou mais da metade do filme quando somos levados adiante, confrontando outros casos de pessoas em situação de preconceito. A partir de então nos deparamos com uma família de albinos; com uma mulher que descobriu através de um exame de DNA, trinta e três anos depois, que o filho que pensava ser seu fora trocado na maternidade; com um casal formado por dois primos e seus filhos, todos portadores da síndrome de barardinelli; e com um grupo de adolescentes homossexuais. São histórias de vida igualmente ricas, e percebe-se que cada uma delas, se olhadas individualmente e com atenção, gerariam um outro longa. Mas o foco aqui é Luccio, e a passagem por essas histórias extras, mesmo ricas, termina por enfraquecer o resultado final. De qualquer forma, Olhe pra mim de novo é relato honesto e comovente, digno dos aplausos em cena aberta que recebeu com entusiasmo durante a exibição no Festival de Gramado de 2011. E igualmente merecedor do resultado que teve durante a premiação do mesmo evento: saiu da Serra Gaúcha de mãos abanando. O que comprova que, se a comunicação se dá, ainda assim ela é ineficaz em seu objetivo maior, ou seja, colocar em evidência a profundidade do tema em debate.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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