Crítica

Poderia muito bem a diretora Mirela Kruel realçar em O Último Poema o caráter inusitado da amizade à distância entre uma jovem moradora de Guaporé, interior do Rio Grande do Sul, e o já consagrado Carlos Drummond de Andrade, radicado no Rio de Janeiro. Também poderia transformar Helena Maria Balbinot, essa mulher que escreveu pela primeira vez ao poeta para expressar admiração, numa personagem menor diante da envergadura de Drummond. Felizmente, nem uma coisa, nem outra. Antes de sublinhar o curioso da afinidade surgida carta após carta, o filme aborda as palavras, sempre respeitosas e gradativamente mais recobertas de afeto, como sedimentos de uma ligação sem presença física, mas nem por isso menos importante e verdadeira. Interessa-nos também a singularidade de Helena, os sonhos ora transformados em realidade, ora desviados inevitavelmente pelo fluxo inesperado das coisas.

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Mirela Kruel se empenha em espelhar na imagem a beleza das correspondências e dos versos que conduzem a trama no plano oral. Os atores Janaina Kremer e Rodrigo Fiatt interpretam, respectivamente, Helena e Drummond em dramatizações repletas de simbolismos, segmentos estes que reverberam o componente emocional suscitado pelas letras datilografadas ou escritas de próprio punho no papel. Ana Júlia Chiodi Alberti vive a Helena menina, materializando de maneira metafórica a inocência da então professora que não se arrepende tanto de ter abdicado de possíveis oportunidades, inclusive acadêmicas, em prol da família. Ela recorda com bastante carinho da atenção do poeta aos seus poemas, das respostas devidamente guardadas, que possibilitaram uma amizade estendida por 24 anos, a despeito da distância considerável entre a capital fluminense e o município interiorano do Sul.

Lençóis tremulando ao vento, impregnados das palavras de Helena e de Drummond, o chão recoberto de páginas e páginas de consideração e reciprocidade, a declamação nos descampados onde apenas, de fato, a fala quebra o ritmo compassado e incessante do vento, a escuridão das bibliotecas propensas tanto à solidão quanto à reflexão, são elementos que exploram o potencial lírico da natureza e das edificações. Em O Último Poema, a Helena de carne, osso e saudade não esconde a emoção ao se lembrar do amigo com quem manteve uma relação de respeito e, até certo ponto, de cumplicidade. Prerrogativa do cinema, a bem-vinda subversão da cronologia, aqui discreta, porém inteligente, colabora para o documentário não cair em determinadas armadilhas, como a sujeição demasiada às imposições do transcorrer temporal para a estruturação do crescendo sentimental.

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Em O Último Poema o tempo é um conceito feito abstrato pela poesia, enquanto o espaço é impregnado dela. A métrica, a entonação, os olhares e as expressões de Kremer e Fiatt, bem como a interação de Helena com a diretora de quem só ouvimos brevemente a voz, fazem parte de uma construção narrativa que tem por objetivo ressaltar as forças da amizade, do verso e da memória. Da pedra do Arpoador, Drummond mira o mar e evoca suas raízes, sentindo-se ainda um cidadão de Itabira, Minas Gerais, ou seja, tão interiorano em seu íntimo quanto a interlocutora da qual, então, entende-se mais próximo. Até a passagem aparentemente mais banal da vida de Helena ganha importância, justo porque a diretora Mirela Kruel dá aos fragmentos o tratamento de versos imprescindíveis às estrofes que, por sua vez, juntas, formam um poema singelo, engenhoso e muito bonito.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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