Crítica

Desmistificar os clichês brasileiros difundidos no exterior sobre futebol, belas mulheres e samba. A sinopse afirma ser esta a proposta deste documentário, uma co-produção entre Alemanha, Brasil, França e Suíça, que busca também descobrir a origem e o significado da palavra samba. Mas, apesar de evitar reforçar estereótipos, não se pode dizer que o longa dirigido pelo francês Georges Gachot atinja por completo os objetivos citados. Tendo o cantor Martinho da Vila e sua relação com a escola de samba Unidos de Vila Isabel como um farol – definição utilizada por um dos membros da agremiação – guiando o caminho de sua narrativa, Gachot se divide entre a biografia, a homenagem e a investigação, sem definir verdadeiramente um foco.

samba-papo-de-cinema-01

Ainda que a vida de Martinho e o samba estejam intimamente ligados, essa divisão de forças narrativas enfraquece o conjunto, fazendo com que boa parte dos temas seja tratada de forma superficial. O início sem diálogos - apenas com imagens dos carros alegóricos se dirigindo ao sambódromo, e de ensaios de integrantes da bateria da escola - é interessante, preparando o terreno para retratar um pouco o cotidiano da comunidade, que parece viver o ano inteiro em função do tão aguardado dia do desfile. Porém, a partir do momento em que Martinho é introduzido neste panorama, Gachot inicia uma colagem de acontecimentos que se alternam sem ter uma linha de desenvolvimento bem definida.

Assim, acompanhamos Martinho em momentos privados em sua casa, de folga em seu sítio/refúgio, nas gravações do DVD Sambabook – em que diversos artistas renomados interpretam seus sucessos, e também dão depoimentos ao documentário -, em uma viagem à França para realizar um dueto com a cantora e ativista política grega Nana Mouskouri, além de diversos trechos de shows do cantor. Esporadicamente o filme se volta ao dia a dia da Vila Isabel, com os ensaios na quadra, a criação das alegorias no barracão, e mostrando como os moradores do bairro enxergam no samba algo além de um ritmo, de um estilo musical. É um estilo de vida que carrega grande peso cultural e social, e esses elementos ganham evidência em determinadas passagens, como no depoimento da cantora Leci Brandão sobre a valorização das raízes afrodescendentes brasileiras.

samba-papo-de-cinema-02

Há, contudo, a criação de um distanciamento físico entre o cantor e sua comunidade. Exceção feita a raras cenas, como a de Martinho com a escola antes do desfile, sua interação com o universo da Vila Isabel é pouco explorada. Talvez a intenção fosse a de apresentá-lo como uma entidade onipresente, sendo sempre citada, influenciando e servindo de inspiração para todos, mesmo que à distância. Mas essa ausência concreta é sentida, especialmente para aqueles que possuem um envolvimento menor com o mundo do samba. Em compensação, Gachot consegue se aproveitar muito bem da figura cativante de Martinho em outros ambientes.

Simpático, bem-humorado e de fala mansa, o cantor gera empatia imediata, especialmente ao deixar transbordar a sua musicalidade de maneira natural. Seja relembrando momentos de sua vida ou debatendo os assuntos mais triviais, Martinho sempre os conecta a trechos de algumas de suas canções, transformando em instrumento qualquer objeto ao seu alcance. O filme também apresenta depoimentos interessantes do cantor, como ao falar sobre o desfile de 1988, ano do primeiro título da Vila Isabel, quando a escola surpreendeu e falou sobre os cem anos da abolição da escravidão – reforçando o apego do cantor por suas raízes – ou em sua passagem por Paris, ao refletir sobre como as versões de suas músicas em outras línguas muitas vezes perdem a essência na tradução. Essa valorização dos significados das letras também está presente no depoimento de Ney Matogrosso, que aponta os aspectos teatrais e cinematográficos do samba e sua importância na formação da identidade musical brasileira.

samba-papo-de-cinema-03

Talvez o olhar estrangeiro de Gachot – ainda que tenha um interesse notório pela música brasileira, já tendo realizado documentários sobre Maria Bethânia e Nana Caymmi – gere a sensação de falta de proximidade com o material. A paixão pelo samba é mostrada e pode ser percebida, mas não sentida com a intensidade que deveria. Uma paixão exemplificada de modo emblemático no plano final do longa, em que uma mulher, numa avenida já esvaziada, samba alegremente alheia a tudo e a todos. Se fugisse de seu convencionalismo em busca de mais imagens como esta, talvez Gachot conseguisse fazer jus a um título tão definidor e categórico como O Samba, indo além da homenagem respeitosa para alcançar a “pulsação que bate no peito”, como diz a letra do samba-enredo "Você Sembo Lá... Que Eu Sambo Cá - O Canto Livre de Angola", apresentado pela Vila Isabel no carnaval de 2012.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
avatar

Últimos artigos deLeonardo Ribeiro (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *