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Sinopse

Tertuliano narra sua história, desde a infância no seio de uma tradicional família paulistana até a própria velhice decadente.

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Tezinho é o malandro amaldiçoado pelo destino, aquele que tentou seguir o caminho certo, mas nele não teve forças para se manter, e por isso logo enveredou por trilhas mais fáceis, porém mal-faladas. Este tipo, frequente no imaginário de Nelson Rodrigues, é o personagem principal de O Rei da Noite, trabalho de estreia de Hector Babenco no cinema de ficção – antes havia dirigido apenas o documentário O Fabuloso Fittipaldi (1973). Porém, ao invés de investir em um texto consagrado do autor pernambucano, o cineasta argentino – naturalizado brasileiro – decidiu apostar em uma história própria. Para desenvolvê-la, chamou o colega Orlando Senna, recém saído do impressionante Iracema: Uma Transa Amazônica (1975), feito em parceria com Jorge Bodanzky. E eles – os dois assinam juntos o roteiro – conseguiram bolar um filme que reflete bem os anseios de realizadores em início de carreira, aprendendo na prática como fazer cinema, movidos mais por uma vontade imperativa do que pelo domínio (ou falta dele) de técnica ou narrativa.

A ironia começa pelo título. Tezinho, o protagonista, é um filhinho da mamãe que nunca sofreu na vida. Seu pai, assim que começou a demonstrar sinais de loucura, foi afastado do convívio familiar e internado em um hospício. Ele e as duas irmãs só foram tomar conhecimento disso muitos anos depois – até então, acreditavam que ele estava apenas viajando. A mão forte da mãe lhe protegia a todo instante, e quando se tornou adulto foi apresentado para a sociedade como o partido perfeito: com um bom emprego (oferecido pelo tio), de família de nome e bem apessoado. A paixão logo surgiu por Aninha (Dorothée Marie Bouvyer, que depois foi ser a Ceci de O Guarani, 1979), mas a moça tinha um problema: um sopro no coração, que a levou a se tratar na Europa, afastando de vez os enamorados. Desiludido, ele decide cair na vida – mas não sem seguir se preocupando em manter a boa imagem para a sociedade. Ou seja, de dia era um, e à noite um outro completamente diferente.

Ainda que o personagem tenha sido batizado como Tertuliano, Paulo José o defende com a graça e a desenvoltura de um legítimo Tezinho. O ator foi fundamental para a realização do filme – foi somente após sua concordância em participar do longa que os demais atores decidiram embarcar no projeto. E ainda que ele não seja um galã nos moldes tradicionais de um Francisco Cuoco ou de um Tarcísio Meira, é fácil entender como o intérprete de Todas as Mulheres do Mundo (1967) conseguia deixar todas as garotas que cruzavam seu caminho loucas por ele. Assim se dá, por exemplo, com as três irmãs que decide desposar: Maria das Dores (Cristina Pereira, em sua estreia nas câmeras), que enlouquece enquanto esperava por ele, Maria das Graças (Vick Militello, com quem casa e a leva até um final trágico), e Maria do Socorro (Isadora de Faria), que cai nos encantos do cunhado durante o velório da própria irmã. Mas nenhuma delas acaba se envolvendo com tanta força como Pupe (Marília Pêra, excepcional), a prostituta e cantora da noite conhecida como Rainha da Noite que mesmo resistindo no início termina se envolvendo de modo irremediável com o rapaz.

Hector Babenco faz de O Rei da Noite um filme quase episódico, mais para uma crônica de costumes da primeira metade do século XX do que uma trama realmente envolvente com início, meio e fim. Repleto de elipses, seu desenvolvimento parece um pouco truncado em alguns momentos, para avançar de modo desordenado em outros. As idas e vindas destes amantes fazem de Tezinho um Don Juan à brasileira, aquele que maltrata a tudo e todos, mas por ser dono de um bom coração (mesmo que este esteja na maior parte do tempo escondido) consegue o que quer no final (por mais irônico que isso possa soar). As frases de efeito de alguns diálogos devem chocar os mais ingênuos, mas comprovam uma falta de compromisso formal que apenas a ânsia da juventude pode oferecer. É retrato de uma época que o cinema nacional não mais consegue reproduzir, mas que deixou saudades, e por isso mesmo merece ser reverenciado.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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