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Sinopse

Depois de descobrir que a mulher do apartamento ao lado é uma prostituta, a jovem que trabalha num escritório passa a espioná-la por meio de um furo na parede.

Crítica

No início da década de 80, uma dupla de estudantes recém-graduados na USP, formada por Ícaro Martins e José Antonio Garcia, surgiu como voz distinta dentro da cena da Boca do Lixo paulistana. O trabalho de estreia dos cineastas, O Olho Mágico do Amor, ainda que seguisse as exigências do mercado das pornochanchadas em relação ao combo nudez/sexo, já apresentava um olhar autoral diferenciado, que viria a flertar ainda mais com o experimentalismo nos longas seguintes: Onda Nova (1983) e o ótimo Estrela Nua (1984). Esses primeiros trabalhos, todos estrelados por Carla Camurati, compõem uma espécie de trilogia informal, constituindo também toda a obra conjunta de Martins e Garcia, que depois seguiriam caminhos separados.

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A trama acompanha Vera (Camurati), garota tímida e retraída que consegue emprego como secretária no escritório da Sociedade Paulista de Amigos da Ornitologia, na Rua do Triumpho – berço da Boca. Lá ela passa os dias atendendo raras ligações e catalogando fichas para o diretor da entidade, o professor Prolíxenes (Sérgio Mamberti), que vive ausente do local de trabalho, deixando-a sozinha e entediada. A enfadonha rotina muda quando, ao tirar um quadro de lugar, Vera descobre um buraco na parede que lhe permite ver o quarto ao lado, onde a prostituta Penélope (Tânia Alves) atende uma grande variedade de clientes. O hábito do voyeurismo passa a exercer um fascínio súbito sobre a jovem, despertando desejos adormecidos. Martins e Garcia mesclam os elementos comerciais da premissa a uma carga fantástica para elevar seu potencial alegórico, focando numa abordagem bastante feminina. Através do contato com o universo de Penélope, Vera inicia uma jornada de transformação, que trata diretamente do tema da liberdade sexual da mulher. Obviamente também existe um prazer fetichista masculino em acompanhar essa metamorfose, mas o subtexto da luta das mulheres contra uma sociedade repressora sobressai. As metáforas que relacionam a ornitologia ao voyeurismo povoam toda a projeção, pois o ato de observar é essencial nesse ramo da biologia, e Vera não só observa como é observada com lascividade pelo chefe. Além disso, a figura dos pássaros empalhados também possui seu significado, referente à existência inerte e sem vida da protagonista antes da descoberta do olho mágico.

Do lado oposto temos Penélope, uma mulher aberta a todos os tipos de experiência, explorando as diversas possibilidades de deleite proporcionadas pelo sexo. Do homem que tem como tara ser sodomizado com uma vela, passando pelo cliente que deseja vê-la transando com a enteada, até o próprio Prolíxenes – que, como o esperado, possui um fetiche ligado a aves – a garota de programa parece se divertir e aproveitar verdadeiramente cada relação, por mais efêmera que seja, reagindo com bom-humor a qualquer situação, como quando deixa que um estudante “pague meia” pelo programa. Mas, ainda que ostente essa postura liberal, a personagem também possui seus conflitos pessoais, materializados essencialmente no cafetão Átila (Ênio Gonçalves), única figura à qual demonstra algum tipo de submissão. A narrativa que se inicia convencional, progressivamente vai ganhando contornos surreais e líricos – como as divagações em off de Vera que soam como versos de poesia abstrata – além de crescer também em intensidade. A mutação da personagem é visível, vide a ardente cena de sexo com o namorado no carro ou ainda o término repentino do relacionamento. Toda essa transição gradual, da curiosidade à obsessão por Penélope, configura também uma condição de confusão em seu estado psicológico, que Martins e Garcia acentuam através da intervenção de elementos sonoros externos que se misturam com os diálogos, como a música interpretada pela mãe de Vera - vivida pela cantora Cida Moreira, que permite também uma brincadeira autorreferencial, quando uma de suas canções toca no rádio – ou a notícia da morte de Glauber Rocha e os diálogos de A Noite dos Desesperados (1969) vindos da TV.

A música por sinal – que vai de John Lennon a Luiz Gonzaga – é parte fundamental de alguns dos melhores momentos do longa, como a cena em que Tânia Alves, na cama, canta “Lenda do Pégaso” – cuja letra cita várias espécies de pássaros - ao lado de Jorge Mautner e Nelson Jacobina. O ícone da Vanguarda Paulistana, Arrigo Barnabé, também faz uma participação especial, assim como os jogadores de futebol Wladimir e Pitta. E falando em atuações, deve-se destacar a entrega completa das atrizes principais. Camurati - premiada em Gramado - ainda muito jovem e no auge de sua beleza, transmitindo toda a fragilidade e inocência de Vera, e Tânia Alves totalmente desinibida, exalando sensualidade em cenas fortes, como a transa com o ladrão.

O Buraco do Amor

Existem pontos de instabilidade na obra. As situações começam a ficar repetitivas, a edição por vezes obstrui a fluência narrativa, e se insinua uma crítica social – sobre a classe média suburbana – que não é bem aprofundada. Os diretores, porém, compensam tais falhas com a criação de sequências esteticamente atraentes, como a do gatuno fugindo pelo telhado, e reservando uma boa dose de dramaticidade ao desfecho. O choque de ser estuprada pelo cafetão em plena rua dispara um gatilho em Vera, que resolve abraçar de maneira extrema sua fantasia, culminando num plano final catártico e ousado, envolto em metalinguagem. Nele as barreiras de real e imaginário se fundem, com todos os personagens ao redor das duas mulheres, celebrando o êxtase da transformação completa de Vera.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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