Crítica

Um documentário sobre o jornalismo. Assim se apresenta O Mercado de Notícias, primeira incursão no gênero do diretor Jorge Furtado que, obviamente, vai além da mera definição. O formato, afinal, não é estranho ao cineasta. Este pode ser o seu primeiro longa-metragem documental, mas não se trata de uma estreia – afinal, vários dos seus curtas já exploravam essa linguagem, como os multipremiados Ilha das Flores (1989) e Esta Não É a Sua Vida (1991). E, da mesma forma como vez antes, o realizador não se contenta apenas num lado ou noutro, e conduz com habilidade uma jornada também ficcional, a partir da peça homônima escrita pelo inglês Ben Jonson em 1625. Este material, aliado aos diversos depoimentos reunidos a partir de entrevistas com profissionais da área, faz desta uma obra de público específico, porém imprescindível a qualquer um consciente de sua pertinência.

Contemporâneo, de Willian Shakespeare, Ben Jonson teve uma carreira mais curta e menos popular do que seu colega, porém muitos dos seus textos seguem repercutindo até hoje. Entre eles está justamente The Staple of News, que nunca havia sido traduzido para o português e que foi descoberto meio que por acaso por Furtado durante a pesquisa de pré-produção do filme. A ideia de discutir a função do jornalismo nos dias de hoje lhe era cara há tempos, porém a partir do momento em que tomou consciência desta peça o projeto adquiriu um novo formato, combinando uma narrativa fictícia – a partir da encenação do texto original – ao lado de entrevistas com renomados jornalistas nacionais. E o conjunto se mostra relevante para os dias atuais, principalmente para aqueles que não aceitam simplesmente tudo o que leem e ouvem por aí, mas guardam consigo o saudável hábito de se questionar e ir além da superfície dos fatos. Mais ou menos o que o próprio diretor fez no desenvolvimento do longa.

A partir da adaptação da peça The Staple of News, feita pelo próprio Furtado em parceria com a professora Liziane Kugland, acompanhamos o que acontece em uma cidade quando surge pela primeira vez a imprensa – e, com ela, a oportunidade de fazer das notícias um meio de negócios. Atores reconhecidos do meio artístico gaúcho, como Eduardo Cardoso, Zé Adão Barbosa, Irene Britzkie, Nelson Diniz, Janaína Kremer e Marcos Contreras, entre outros, defendem com bom humor e dedicação esse conto que combina farsa com comédia de erros. Estas intervenções servem como um contraponto curioso, oferecendo um alívio necessário ao discurso adotado. No entanto, a força de O Mercado de Notícias está mesmo nos seus entrevistados, pessoas selecionadas a partir de suas posições no cenário nacional, combinadas com o gosto pessoal do cineasta, que foi atrás de jornalistas que ele próprio admira. E o conjunto é realmente impressionante.

Assuntos como o que é notícia, ética, fontes, isenção dos fatos, patrocinadores e governo são tratados com profundidade e dedicação por profissionais como Bob Fernandes, Mino Carta, Geneton Moraes Neto, Janio de Freitas, Luis Nassif, Cristiana Lobo, Renata Lo Prete e Maurício Dias, entre tantos outros. Para cada ator da peça há um repórter, editor ou colunista correspondente sendo entrevistado. O painel traçado, portanto, é amplo e diversificado. E assim como aponta para a crise do jornalismo atual, em que todo mundo se crê capaz de divulgar notícias simplesmente pelo acesso ilimitado à internet, com muitos falando e poucos ouvindo, ao mesmo tempo se discute com uma visão até mesmo positiva a necessidade de uma maior profissionalização para esta atividade: no futuro, somente os bons poderão realmente definir e vislumbrar com precisão o que merece, ou não, ser noticiado, separando-o daquilo sem valor algum.

O Mercado de Notícias é uma aula de jornalismo, bebendo direto da fonte de alguns dos mais importantes e influentes profissionais do ramo em atividade no Brasil. Jorge Furtado não escapa de polêmicas, e com coragem e dono de uma visão bastante clara da atual conjuntura a respeito desta questão, levanta posicionamentos e instiga polêmicas, seja na política ou mesmo no comportamento pessoal de cada um. É um filme que faz pensar sem ser didático ou repetitivo, mas brincando com o tema e estimulando a reflexão e o debate. Uma jogada genial, que justifica o interesse despertado.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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