Crítica

O francês Jérémie Renier é um ator recorrente no cinema dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, tendo marcado presença nos três últimos trabalhos dos realizadores belgas. Essa parceria se repete de forma quase que ocasional em O Garoto da Bicicleta, estabelecendo uma relação quase que de continuidade com uma experiência anterior do trio, o multipremiado A Criança (2005). Seu personagem no longa mais recente é praticamente o mesmo visto anteriormente. Ele, agora, mal aparece, mas tudo que ocorre no filme é decorrente de suas ações e, principalmente, da falta delas. Exatamente como acontecia antes. A ligação é tão forte que ele segue se sentindo culpado por seus atos, mas ao invés de enfrentá-los, prefere por fugir, renegando qualquer tentativa de lidar com eles e crescer diante destes desafios. Sob certo aspecto, é sempre ele o protagonista, mesmo que sob óticas diversas.

Se em A Criança ele era o jovem drogado que negociava o próprio filho com traficantes, em O Garoto da Bicicleta aparece como o homem tentando se endireitar na vida – nem que, para isso, acredite ser necessário abandonar o único filho em um orfanato. Este menino é o foco da atenção da vez, evitando repetir os erros do pai, porém sem vivência para reconhecer estes deslizes nem sabedoria para contorná-los. O pequeno, rebelde e obstinado em seu desejo de reencontrar a figura paterna, tem na velha bicicleta um ponto de apoio, o único elo com aquele que um dia teve por ele afeto e que agora optou por deixá-lo. São exemplos tristes – o pai e o filho – de pessoas que deverão lutar com as próprias forças para encontrarem um lugar em suas vidas. Mas, ao contrário do olhar mais pessimista de antigamente, os Dardenne oferecem uma visão mais iluminada, acrescentando um elemento que faz toda a diferença: esperança.

Cyril (a impressionante revelação Thomas Doret) acredita estar sozinho no mundo e pede pelo pai. É sintomático, no entanto, o fato de que em nenhum momento é feita referência à mãe. Não se sabe onde ela está, se ainda é viva ou se há preocupação da parte dela com o destino dele. E é justamente por isso que causa mais surpresa quando uma mulher aparece no caminho do garoto: Samantha (Cécile De France, do ótimo Um Lugar na Plateia, 2006, e do hollywoodiano Além da Vida, 2010), a cabeleireira que por uma razão não-identificada decide abraçar a causa do órfão e introduzi-lo em sua vida. A relação entre os dois, de início, é complicada e turbulenta, e atinge o ápice da dificuldade quando ele se envolve com um ladrão que o chama para um golpe. Mas os caminhos não são definitivos, e se aqui fazemos, ainda há como buscar a redenção numa busca pelo que é certo.

O objeto de estimação do menino pode significar liberdade, afeto, recomeço. E é justamente isso que os personagens buscam em O Garoto da Bicicleta. Vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes, este é um longa que vai direto ao estômago do espectador, sem nenhum auxílio de artifícios extras, como uma trilha sonora comovente ou uma edição frenética. A emoção aqui é a mais realista possível, e se ficamos tocados com o que vemos é porque verdadeiramente nos importamos, e não porque somos levados a essa conclusão quase que inadvertidamente. Bons atores e uma direção segura podem fazer toda a diferença, mas nada como uma história que aposta no essencial – a sinceridade – para trazer à luz o que qualquer um busca: um lugar para chamar de seu. Seja ao lado de alguém ou mesmo no comando de uma bicicleta.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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