Crítica

A câmera é tão protagonista quanto Dênis (Roberto Miranda) em O Fotógrafo. O dispositivo permite ao profissional da imagem o acesso a camadas muitas vezes recônditas das mulheres que posam para a lente como se quiserem verdadeiramente seduzi-la. Bem remunerado, de habilidade reconhecida na área da publicidade, esse homem demonstra insatisfação por repetir itinerários estilísticos e não conseguir desenvolver sua veia artística. Os contratantes pagam melhor pelos nus, por seu talento evidente para provocar nas modelos uma excitação necessária ao mercado. Contudo, ele gostaria de aprofundar-se no registro de janelas, esforço insalubre cuja importância padece diante da necessidade de pagar as contas. Por meio dessa condição, o diretor Jean Garrett aborda uma dicotomia intrínseca ao fazer cinema. Arte e comércio são dimensões de complexa associação, fato que, não raro, obriga os criadores preocupados além do entretenimento a se tornarem contrabandistas em seu próprio meio de expressão, como de fato ocorre neste filme.

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Diferentemente de outros exemplares da Pornochanchada, O Fotógrafo possui um apuro visual sobressalente. Tal atributo advém da fina artesania de Garrett, de uma expertise também impressa nos procedimentos que exploram aspectos mais densos, especialmente no que tange à psicologia dos personagens. Em meio ao percurso marcado por transições tecnicamente inteligentes, como aquelas pontuadas pelo som do obturador da máquina fotográfica ou pela luminosidade fugaz do flash – o que eleva ainda mais a autoridade do equipamento enquanto produtor de sentidos –, há um clima latente de sensualidade. Dênis dirige as modelos, construindo históricas estimulantes, pequenas ficções que permitem aos impulsos mais sexualmente vibrantes dessas aspirantes ao estrelato virem à tona. Esse crescendo que geralmente culmina na relação sexual ganha ares incisivos de observação social depois que a ricaça vivida por Meiry Vieira confessa a fantasia de ser uma prostituta de luxo. Arrependida, ela retorna ao “conforto” da moral burguesa, devidamente reprimida.

A paixão de Dênis pela vizinha lhe permite vislumbrar novos horizontes. Há um quê de Janela Indiscreta (1954) no voyeurismo, na objetiva tornando-se extensão do olho desejoso. Uma vez apaixonado, esse homem passa a prestar atenção nos livros de poesia, até então meros adornos nas prateleiras. Ainda que possua múltiplas possibilidades de leitura, O Fotógrafo escorrega eventualmente, pois abandona por alguns instantes os desdobramentos da crise existencial que assola o protagonista, condição passível de amplificação por um amor, a priori, platônico. Exemplo disso, a sequência do ensaio fotográfico que culmina no sexo entre os modelos de determinada campanha, com o detalhe de o rapaz ser assumidamente homossexual, mesmo assim cedendo aos encantos da colega de cena. É uma passagem apenas curiosa, de alta carga erótica, por certo, mas deslocada naquele ponto da história em que as questões pertinentes a Dênis se direcionam a outro patamar, que não os relativos à epiderme.

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O filme de Jean Garrett possui uma atmosfera bastante distinta dos demais longas que na época se valiam do sexo como um elemento peremptório. Se em boa parte dos congêneres o valor feminino era medido apenas pela capacidade de excitar, sendo o homem um símbolo inequívoco de virilidade, aqui as coisas mudam radicalmente de figura, sobretudo quando a caminho do encerramento. Primeiro, a impotência literal, segundo, a simbólica, falhas destoantes daquele contexto em que comumente havia uma celebração da masculinidade frente à hipersexualização e a objetificação da mulher. Tais ocorrências oferecem o tom melancólico com o qual Garrett retorce as bases da Pornochanchada. Seja na ocasião em que a personagem de Aldine Müller fecha as cortinas para Dênis não testemunhar a transa, ou no momento em que a amiga se vai após uma tórrida noite de prazer, a subversão, que já se notava na forma, da execução da melodia pesada de Schumann ao lúgubre cenário, atinge inapelavelmente o conteúdo, expondo a intenção (muito bem-sucedida) de transcender a simples exibição de corpos desnudos.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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