Crítica

Pai é aquele que cria, diz a sabedoria popular. Em seu novo trabalho, o norte-americano radicado na França, Eugène Green, resolve elevar este conceito à relação com O Criador máximo, através de seu olhar sempre irônico, contudo nunca depreciativo, sobre a religião. O simbolismo católico, recorrente em sua obra – como em A Religiosa Portuguesa (2009) – está presente neste O Filho de Joseph desde o título até a divisão narrativa em capítulos com referências bíblicas (“O Sacrifício de Abraão”, “O Bezerro de Ouro”, “O Sacrifício de Isaac”, “O Carpinteiro” e “Fuga para o Egito”). A trama acompanha o jovem Vincent (o ótimo estreante Victor Ezenfis) atormentado pelo fato de desconhecer a identidade do pai, informação ocultada pela mãe, Marie (Natacha Régnier), uma benevolente enfermeira.

Sufocado pela angústia, Vincent descobre uma carta de Marie endereçada a Oscar Pormenor (Mathieu Amalric), um renomado editor literário, revelando ser ele seu pai. O garoto parte, então, em busca do ausente progenitor, deparando-se com uma imagem contrária à esperada, já que Oscar é um homem arrogante e impiedoso. Determinado a vingar tal comportamento desprezível, Vincent cruza o caminho de Joseph (Fabrizio Rongione), o irmão, de personalidade completamente oposta, de Oscar, com quem inicia uma jornada de descobertas. Apesar de todas as alusões bíblicas, o longa de Green não pode ser considerado religioso, mas sim espiritual. Espiritualidade essa que permeia seu cinema, nunca dissociada da intelectualidade, pois, para ele, o sacro e o erudito caminham lado a lado.

Essa comunhão de valores é percebida nos passeios culturais feitos por Vincent e Joseph em Paris, como quando adentram uma catedral, onde presenciam uma performance na qual é recitado o poema Épitaphe pour son fils, de Honoré de Racan, seguido pela interpretação da soprano Claire Lefilliâtre para Lamentation de la mère d'Euryale, de Domenico Mazzocchi. A sequência, de beleza sublime, que evidencia o apreço de Green pelo barroco, através do contraste de luz e sombras da iluminação a velas, exemplifica com perfeição a conexão metafísica entre arte, conhecimento e fé pretendida por ele – já vista em seu ápice no longa anterior, La Sapienza (2014). Contudo, por maior que seja a erudição do conteúdo, Green nunca permite que este se torne inacessível ou soe prepotente. Pelo contrário, o diretor insere suas referências de modo totalmente orgânico.

Para se aproximar do espectador, Green se vale justamente de seu rigor formalista, a princípio uma ferramenta improvável, mas que resulta precisa. Da artificialidade da encenação, extrai-se a humanidade, deixando claro estarmos diante de uma farsa, mas lembrando que toda farsa carrega traços de verdade. Uma verdade dita olhos nos olhos, através de enquadramentos impecavelmente simétricos, que centralizam os atores encarando diretamente a câmera, e da simplicidade sincera do uso do plano/contraplano. Desta forma, sentimos como se os personagens nunca nos escondessem nada, compartilhando todos os seus anseios dentro das falas declamadas teatralmente e do minimalismo de gestos e expressões. Green valoriza as palavras, pois a força de seu estilo está na união destas com as imagens, e nas interpretações de ambas, e em O Filho de Joseph ele realiza essa combinação com leveza e ainda mais comicidade

O humor se apresenta muito relacionado ao tema central do vínculo paterno – o restaurante chamado “Pais e Filhos”, as excelentes piadas com o amigo de Vincent que inicia um negócio de venda de esperma pela internet – e também em sutilezas – como as anedotas e trocadilhos que o garoto conta a Joseph, ou no fato de Oscar, de sobrenome “Pormenor”, declarar repetidamente que “não se atém a detalhes”, como a existência de seus três filhos legítimos. Green também encontra espaço para satirizar o meio literário, como na sequência do coquetel de lançamento de um livro da editora de Oscar, na qual a crítica Violette Tréfouille (Maria de Medeiros em divertidíssima participação) confunde Vincent com um jovem autor em ascensão.

Todos esses elementos contribuem para a composição da aura iluminada do longa, que, de certa forma, se contrapõe, com equilíbrio, à citada admiração de Green pelo barroco. Gosto materializado na presença de obras de pintores como Caravaggio – com a tela O Sacrifício de Isaac exibida na parede do quarto de Vincent, cuja imagem é reencenada, de modo inverso, no confronto do garoto com Oscar - Philippe de Champaigne, com seu Cristo Morto, e Georges de La Tour, com o quadro São José, Carpinteiro, que ilustra diretamente a reflexão inicial sobre a paternidade – aquele que cria – na cena em que Vincent afirma que José não é pai de Jesus, ao que Joseph replica que sim: “Por causa desse filho, ele se tornou pai”. Tal afirmação simboliza a fé, no sentido mais amplo da palavra, de Green. Sua crença na bondade como uma qualidade natural, primitiva, cuja prática é recompensada.

Recompensa finalmente oferecida a Vincent, pela demonstração de pureza frente aos dilemas morais enfrentados – não maltratar o rato engaiolado, devolver a ferramenta roubada da loja, arrepender-se da ideia de homicídio. A crença de Green também se estende à redenção, possibilidade que acena, ainda que parcialmente, a Oscar. Toda a proposta da metáfora religiosa se concretiza no ato final, numa recriação do nascimento de Jesus, com Joseph e Marie, figuras quase imaculadas, o filho inocente e até mesmo o burro – algo que remete também a Robert Bresson, grande influência de Green, e seu A Grande Testemunha (1966). É a imagem de Vincent ao lado do pai que lhe é de direito, que confirma a fé do cineasta no ser humano, na ideia do merecimento relacionados às atitudes. Algo que ele expõe sem qualquer tom de pregação, apenas observando e comentando, tal qual o personagem do concierge do hotel, interpretado pelo próprio, permitindo a entrada do espectador neste seu universo tão idiossincrático quanto acolhedor e admirável.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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