Crítica

“Podemos escrever uma carta para mamãe e para o papai?”, pergunta o menino para sua irmã. Ela, com olhos cheios de lágrimas, balança a cabeça negativamente, pensa mais um pouco, força um sorriso e diz: “Sim, vamos”, logo percebendo a alegria no rosto do seu irmão caçula. Seus pais não receberão esta carta, a garota pensa. Mas o menininho não precisa saber. Não agora, pelo menos. Esta é uma das muitas sensíveis cenas comandadas por Masakazu Sugita, diretor e roteirista do ótimo drama japonês O Desejo da Minha Alma.

Na trama, conhecemos a menina Haruna (Ayane Ohmori) e seu irmão caçula Shota (Riku Ohishi). Órfãos após um terrível terremoto no Japão, os dois são deixados sob a custódia dos tios e do avô. Shota não sabe que seus pais morreram, sempre esperando que eles apareçam a qualquer hora. Haruna, por sua vez, sente um grande vazio após a perda dos pais. Ela passa por momentos de pura letargia, depois pela tristeza, culminando na dor pontiaguda, quando talvez ela se dá por conta que realmente nunca mais verá seus pais. A tia (Nahoko Yoshimoto) tenta de todas as formas deixar que este momento seja o menos traumático possível para as crianças, mas mesmo com suas intenções positivas, aquela perda é grande demais. Seu filho, por exemplo, começa a se ressentir da atenção que os primos vêm ganhando e é uma voz contra a presença daquelas crianças dentro de sua casa.

O Japão tem histórico de terremotos catastróficos e um dos maiores e mais recentes aconteceu em 2011, deixando milhares de mortos. As estruturas físicas são rapidamente consertadas, visto que o país tem o know how para este tipo de evento, dada a sua recorrência. Mas e as cicatrizes que não enxergamos? As feridas internas da perda de familiares e entes queridos não são facilmente recuperadas. E é isto que mostra tão habilmente o trabalho de estreia de Masakazu Sugita. Enfocando naquela dupla tão jovem este momento traumático, o diretor faz de O Desejo da Minha Alma um longa-metragem não só narrativamente correto, mas artisticamente necessário para expurgar a dor de tantos que perderam membros da sua família em tragédias como esta.

Existe um cuidado muito grande e uma sensibilidade tremenda ao tratar o assunto. Dado o andamento da história e a construção dos personagens, é quase como se o estúdio Ghibli, do lendário Hayao Miyazaki, de animações como Meu Amigo Totoro (1988) e A Viagem de Chihiro (2001), resolvesse fazer filmes em live action. Em O Desejo da Minha Alma não existe aquele lado fantástico que geralmente permeia as animações de Miyazaki. Mas aparece, sim, um esmero em criar personagens infantis reais, que têm dentro de si uma explosão de sentimentos e que pela tenra idade, nem sempre conseguem expressar.

Ajuda e muito o fato de os atores mirins serem muito bem dirigidos. Riku Ohishi, o garotinho que interpreta Shota, é adorável e muito natural. Seu personagem, é verdade, acaba sendo mais fácil do que Haruna, vivida por Ayane Ohmori, uma menina que precisa engolir seus sentimentos de perda para não entristecer seu irmão. Obviamente, chega uma hora que todo aquele luto não vivido em plenitude acaba estourando, em uma das cenas mais intensas do filme. Não é possível represar tudo e ela descobre isso de forma explosiva.

Com andamento lento ideal e tempo até curto para contar a história, Masakazu Sugita mostra a que veio e entrega com muita segurança um drama maiúsculo. Ainda que no terceiro ato, a narrativa fique um tanto à deriva – talvez um retrato de sua protagonista – ele logo acha seu eixo nos minutos finais. Ganhador de Menção Especial do Júri no Festival de Berlim 2014, O Desejo da Minha Alma é um filme sobre dor, perda, mas também de como podemos e temos que saber nos reconstruir após um evento traumático. Assim como o Japão conseguiu se reerguer depois de tantos terremotos, é uma necessidade humana fazer o mesmo. Ainda que doa. Ainda que leve muito mais tempo.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista, produz e apresenta o programa de cinema Moviola, transmitido pela Rádio Unisinos FM 103.3. É também editor do blog Paradoxo.
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