Crítica

Escrito e dirigido por Daniel Burman, O Décimo Homem é um labirinto cuja realidade precisa ser reconfigurada pelo protagonista. Para isso, o roteiro faz questão de assinalar a presença do cotidiano de tal forma a transformá-lo em personagem. Ariel convive com as sombras dos pais e os ecos de uma comunidade da qual alterna o sentimento de não pertencimento com a vontade de integração, como ocorre ao se aproximar de Eva, a religiosa ortodoxa interpretada por Julieta Zylberberg (Relatos Selvagens, 2014).

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Durante um certo tempo, Daniel Burman não entrava no Brasil pela porta da frente. Enquanto vários filmes desembarcam com o selo de “cinema argentino”, Burman acabava relegado a um patamar de interesse secundário, digamos assim. Não exatamente por sua qualidade, mas em especial pelo estilo, que em suas primeiras produções não se enquadrava no tipo de cinema portenho que o brasileiro esperava encontrar – além, claro, de aguardar o rosto do ministro das relações exteriores da Argentina, Ricardo Darín.

De O Abraço Partido (2004) a A Sorte em suas Mãos (2012), Burman teve o seu momento mais inspirado. Os cinco filmes que preenchem o período têm em comum o sempre difícil acordo entre simplicidade narrativa e densidade psicológica, somados à tradicional facilidade argentina de contar boas histórias. Tramas às quais o diretor não procurava ir muito longe, concentrando-as no núcleo dos dramas familiares e da cultura judaica.

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A boa fase garantiu ao trabalho de Burman uma recepção mais justa. Acolhido pelos cinemas, os últimos dois filmes O Mistério da Felicidade (2014) e, em especial, O Décimo Homem (2016) deixaram a desejar. No original El Rey del Once – alusão ao tradicional bairro de Buenos Aires – narra a história de Ariel (Alan Sabbagh), um economista que deixa Nova York a fim de levar a namorada para conhecer a sua cidade natal, Buenos Aires. A viagem não sai como o imaginado e Ariel retorna à capital argentina sozinho. Lá, se depara com uma cidade estranha, não apenas pelo tempo vivido fora, mas em especial pela nova disposição das relações afetivas. A mãe já não figura entre eles, e Usher, o pai, é um sujeito contraditoriamente ausente e autoritário.

Diferentemente de outros trabalhos, em que o diretor habilmente conduzia o público pelo enredo com leveza, aqui o itinerário do futuro “rei" do bairro Once tem dificuldade para engrenar. O mais correto, porém, seria dizer que talvez jamais engrene. A saga de Ariel vagando por uma Buenos Aires própria, conhecendo e reconhecendo o espaço que fora seu, sofre pelo excesso de banalidade e a falta de um eixo de sensibilidade, traço inesperado para quem conhece a carreira do diretor.

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O filme transcorre na expectativa da festa de purim e mesmo a chegada da data comemorativa da vitória sobre os persas não é suficiente para transmitir com intensidade a interpretação simbólica da recolocação de Ariel no novo mundo. Desprovido de uma expressão eficaz em boa parte da sua constituição dramática, O Décimo Homem limita-se ao peculiar humor judaico que, muito embora possa conseguir algumas risadas, pouco serve de sustentação para uma aventura que, ao final, se revela frágil e tímida.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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